Até hoje isso me choca.
Como podem os médicos decidir sobre o que fazer com os doentes de quem cuidam, sem ouvir as pessoas que os amam? Que direito temos nós de decidir sozinhos sobre o que deve ser feito pelo doente, visando apenas a vida física daquele indivíduo e desrespeitando a qualidade dessa vida?
Com o papai se passou o seguinte: ele teve uma noite um mal súbito e estava em um hospital de uma pequena cidade. Piorou rapidamente e o levamos em ambulância para a cidade grande. Lá foi diagnosticada embolia pulmonar maciça e, desde o diagnóstico, sabíamos todos que a sobrevivência seria quase impossível.
Aliás, se ele sobrevivesse, a qualidade da sua vida seria muito precária. Tinha uma grande chance de nem voltar à consciência.
Quem o conhecia sabia muito bem o quanto isso seria inadmissível para ele continuar vivo sem que pudesse carregar livremente aquele imenso coração por onde ele quisesse.
E foi pensando nisso que mamãe e eu recusamos aos médicos autorização para amputar-lhe as duas pernas: o risco cirúrgico era muito alto e a cirurgia não lhe traria nenhuma melhora que significasse de longe melhor qualidade de sobrevivência. Não havia praticamente nenhuma chance de o coma ser revertido; ele teria que permanecer na UTI até a morte, que parecia iminente.
Eu, que dormia no quarto de plantonista da UTI, fui dormir com a minha mãe naquela noite. Cheguei às 7h da manhã seguinte no hospital e encontrei o seu leito vazio.
Os médicos tinham-no levado ao Centro Cirúrgico há cerca de meia hora.
Ele morreu naquela tarde, sem voltar à consciência.
Talvez tenha sido nesse dia que eu tenha jurado a mim mesma que jamais desrespeitaria a decisão de um doente e da sua família.
A dor da perda fica muito mais amarga…
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiana, Professora de Tanatologia e Cuidados Paliativos na FMIt, co-autora e co-tradutora de livros na área de Tanatologia e Cuidados Paliativos. Veja sua coluna“Do Divino que há em nós”.