Ouvi de uma amiga o ditado da velha tia que costumava dizer: “está tudo certo, minha filha, a gente é que não percebe”. Inconformada com algo que não concordava ou com algum sofrimento inevitável, minha amiga reclamava para a tia que a ouvia com uma invejável serenidade, aquela serenidade própria dos animais e das flores de que já falava Cecília Meireles, sugerindo que sejamos como a flor que se cumpre sem pergunta, como a cigarra, queimando-se em música, o camelo que mastiga sua longa solidão, o boi que vai com inocência para a morte … “sede assim qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens”.
Cecília Meireles nos aconselhava a serenidade contra a ansiedade do mundo porque há coisas e fatos sobre os quais nada poderemos fazer. Pois é. Mas quem é que fica sereno diante da dor? Acompanhando os primeiros acontecimentos do ano, nós nos deparamos com as tragédias do deslizamento em Angra dos Reis, da destruição em São Luiz do Paraitinga e das incontáveis inundações em São Paulo. É verdade que tantas outras tragédias aconteceram com pessoas cujos nomes não foram divulgados, restando a elas uma dor solitária, porém as recentes e tristes imagens foram insistentemente mostradas e comentadas até à exaustão, suscitando em nós dores antigas pelas perdas que já sofremos e sentimentos de solidariedade porque somos tão humanos e tão sujeitos a quaisquer tragédias como aqueles que foram acometidos por elas.
Por outro lado, há tragédias que poderiam ser evitadas como a eleição e reeleição de políticos corruptos que se exibem em patéticas imagens, com declarações vestidas de mentira e ironia. Também a tragédia da destruição do planeta poderia ser contornada com mais boa vontade se os países mais poderosos priorizassem a vida em detrimento do lucro material exagerado, porém a história mostra que a ganância conduz os homens à total insanidade. Quantos filmes nós assistimos e livros que lemos em que o vilão (vale lembrar que o vilão pode ser qualquer um de nós) prefere morrer abraçado ao cálice de ouro a desistir dele para só abraçar a vida, ainda mais quando salvar a própria vida implica salvar a de outros concorrentes. Enfim, entramos o ano com um fio de medo nos percorrendo o corpo e a alma ao trazer à lembrança o fracasso do encontro em Copenhague e perguntamos a nós mesmos: o que será do futuro de nossos filhos e netos, e por que não do nosso próprio futuro que já é presente, comprometido pelo estrago do planeta em que vivemos? Então, não é que o entendimento não houve? Fosse esse encontro de pinguins, ursos ou cães, teriam eles certamente encontrado um meio de salvar a todos.
Todavia, nem tudo está perdido, a esperança está nas imagens bonitas que pudemos observar no meio de tantas outras tão dolorosas: em São Paulo, um homem insistia em tirar o lixo do bueiro para que as águas de mais uma tempestade pudessem escoar. Perguntado pelo repórter qual a razão daquele gesto isolado e quase ineficaz, ele, cidadão do mundo, respondeu – “sou carioca, vivo em São Paulo, amo São Paulo!” Não importava que ele fosse o único homem a lutar contra o erro de milhares. Em São Luiz do Paraitinga, no meio ao caos da cena que mais parecia de guerra, um jovem voluntário dizia: “vamos reconstruir pedra por pedra, tijolo por tijolo, coração por coração”.
Pois para salvar o planeta e a humanidade talvez precisemos mais do coração do que da razão, sendo esta, segundo Pascal, uma benção, mas também uma maldição. No fim de tudo, a tia de minha amiga sabia: “está tudo certo, minha filha, a gente é que não percebe”, ou seja, a vida prossegue com nossos acertos e nossos erros.