Nós nos reproduzimos através de gerações sucessivas. E a unidade básica de organização desta reprodução é a família. Ou pelo menos foi: hoje, o processo está se tornando incomparavelmente mais complexo e diversificado.
Vista pelo ângulo da economia, a reprodução de gerações em uma família se constrói por meio de laços de solidariedade. Os pais cuidam das crianças e de seus próprios pais já idosos, e serão, por sua vez, cuidados pelos filhos. A solidariedade é marcada pela panela, pelo fato de um grupo sobreviver em torno do mesmo fogão de cozinha. Não é à toa que “lar” tem a mesma raiz que “lareira”, como é o caso também, por exemplo, de “foyer” e “feu” em francês, bem como hogar em espanhol. Como a criança não tem autonomia para sobreviver, e o idoso pouca, a sobrevivência das sucessivas gerações dependia vitalmente, no passado, e ainda depende em grande parte nas sociedades modernas, da solidariedade familiar.
Em termos econômicos, a fase ativa da nossa vida, tipicamente dos 16 aos 64 anos, pode ser vista como produzindo um excedente: produzimos nessa idade (nesse período?) mais do que o consumido, e com isso podemos sustentar filhos e idosos, eventuais pessoas com deficiência, ou doentes, ou pessoas da família, mesmo em idade ativa, que não tenham como se sustentar. Em outros termos, a economia da família permite, ou permitia, uma redistribuição interna entre os que produzem um excedente, e os que necessitam desse excedente para sobreviver.
O que está acontecendo é que a família está deixando de assegurar essa ponte entre produtores e não produtores. A família ampla, na qual se misturavam avôs, tios, primos e irmãos, praticamente desapareceu, ainda que sobreviva em regiões rurais. O capitalismo moderno, centrado no consumismo, inventou a família economicamente rentável, composta de mãe, pai e um casal de filhos, o apartamento, a geladeira com covinhas para 12 ovos, o sofá e a televisão. É a família nuclear.
A tendência mais recente é a desarticulação da própria família nuclear. Nos Estados Unidos, apenas 26% dos domicílios têm pai, mãe e filhos. Na Suécia, seriam 23%. Hoje se contam nos dedos os amigos que não estão divorciados. Mesmo quando estão juntos, pai e mãe trabalham, os filhos estão na escola (quando está tudo em ordem), e a vida familiar resume-se frequentemente a uma pequena roda cansada olhando para as bobagens da televisão no fim da noite.
O próprio casamento tem um futuro incerto. Um balanço da situação na Europa ocidental e em países de língua inglesa constata que há quarenta anos havia em torno de 5% de nascimentos sem casamento. Hoje, essa proporção ultrapassa 30%. Essa tendência pode ser muito desigual, já que no Japão, por exemplo, é de apenas 1%. Entre os hispânicos nos Estados Unidos, são 42%, e entre negros americanos, 69%, enquanto a média geral americana é 33% (Doyle, 2002).
A mudança profunda e acelerada na estrutura familiar tem, sem dúvida, impacto sobre um grande número de dinâmicas sociais, na cultura, nos valores, nas formas de convívio. Interessa-nos aqui particularmente a dinâmica da reprodução social.
O ser humano nem sempre obedeceu à filosofia geral do homo homini lupus, homem lobo do homem. Para além da família, havia as comunidades, os clãs, as tribos, os quilombos, as sociedades mais ou menos secretas e as mais diversas formas de solidariedade social. Ou seja, podia-se procurar o vizinho. Hoje, nessa era da sociedade anônima, uma pessoa está literalmente só na multidão urbana. A urbanização e, sobretudo, a metropolização, contribuíram para isso, mas também contribuíram a televisão, a formação dos subúrbios e das cidades-dormitório, e uma série de fatores tão bem estudados por Putnam (2000) em Bowling Alone. Voltaremos a isso. O que nos interessa nesse momento é o fato de que, junto com a família, é a própria articulação da comunidade e da solidariedade social que se fragilizam.
Com a revolução tecnológica, o conhecimento torna-se um elemento central dos processos produtivos. Uma geração atrás, a infância terminava com o quarto ano primário, e o filho aos 12 anos já ajudava o pai na roça, a menina carregava água e cuidava dos irmãozinhos. Hoje, para a maioria das pessoas, a fase dependente no início da vida tende a se estender cada vez mais, e vemos com frequência jovens que vivem uma pós-adolescência tardia, buscando mais um ano de estudo, à procura de um emprego no horizonte. Estar no “lar” aos 25 não tem hoje nada de original.
Do lado do idoso, havia uma certa lógica nas sociedades de antigamente. Vivia-se até os 50 anos, quando muito, e o tempo de criar os filhos era a conta justa. Hoje, uma pessoa pode perfeitamente viver até os 80 ou mais anos, e a terceira idade assume uma dimensão que cobre entre um quarto e um terço da nossa vida. Trata-se, aqui também, de uma fase de dependência muito precária, pois os sistemas de aposentadoria, tanto em termos de cobertura como de nível de remuneração, são amplamente insuficientes, enquanto a família comercialmente correta simplesmente evita o convívio com o idoso.
Ou seja, o tempo de dependência da nossa vida aumentou dramaticamente, enquanto a família, que as segurava a redistribuição do excedente entre as gerações – e entre as fases remuneradas e não remuneradas de nossas vidas – está se tornando cada vez menos presente. Esse processo torna absolutamente indispensável a presença de mecanismos sociais de redistribuição de renda, suprindo o papel que as famílias estão deixando de desempenhar. Trata-se, do ponto de vista das políticas públicas, de uma redistribuição de renda já não só dos ricos para os pobres, mas entre gerações, por meio da expansão das políticas sociais.
Passamos a depender, portanto, de mecanismos formais de redistribuição do excedente social entre produtores e não produtores. Nesse contexto, as críticas tão frequentes à extensão de políticas sociais e ao Estado de bem-estar – que, aliás, nunca foi muito amplo entre nós – resultam de uma incompreensão da simultânea ampliação da dependência e desestruturação das famílias. Pior ainda, a privatização das políticas sociais, que as torna voltadas para elites, torna a situação absolutamente dramática para amplas faixas da população, nas quais se juntam dependência e pobreza. A continuidade da ponte entre gerações se rompe.
Tentar reduzir o Estado, sobretudo nas suas dimensões sociais, constitui portanto um absurdo e uma compreensão completamente equivocada do rumo das transformações sociais. Os países desenvolvidos, que possuem de forma geral amplas políticas sociais, dotaram-se de máquinas estatais que gerem, em média, 50% do produto interno bruto. Em comparação, em nossos países em desenvolvimento, o Estado gere em média 25% do PIB, sendo o próprio PIB proporcionalmente menor. O Brasil, com 34%, está no início da evolução para uma relação Estado/ privado mais equilibrada.
É importante lembrar que as políticas públicas, apesar de todo gosto que temos em criticá-las, constituem de longe o instrumento mais eficiente de promoção de políticas sociais, e em todo caso as únicas que permitem o equilíbrio social. Basta constatar a excelência nessa área atingida por países como Canadá ou Suécia, ou ainda comparar Canadá com Estados Unidos, onde, com o dobro do gasto, não chega nem de longe à qualidade dos serviços de saúde canadenses. Isso sem falar de Cuba, onde a excelência na área da saúde é atingida com recursos exíguos. A razão é bastante simples e meridianamente clara, por exemplo, na saúde: uma empresa privada quer ter mais clientes, o que no caso da saúde significa mais doentes. Com isso, se perde a visão essencial da prevenção, e predomina a indústria da doença.
Na educação, o processo é semelhante, com as universidades privadas aumentando simplesmente o número de alunos por professor: aluno é dinheiro, professor é custo. As principais universidades americanas são privadas, mas sem fins lucrativos. No caso brasileiro, com a forte concentração de renda, o setor privado, quando entra no social, busca naturalmente servir quem pode pagar, e gera o luxo para as elites, drenando recursos e privando os serviços sociais de seu papel de gerador de equilíbrio na sociedade.
No conjunto, portanto, enquanto as fases não remuneradas de nossas vidas se expandem, a família perde seu papel redistribuidor, as comunidades perdem seu caráter de solidariedade, o Estado ainda engatinha em seu papel de provedor e o setor privado abocanha os recursos e os direciona para as elites, agravando a situação do conjunto. Geram-se, assim, imensas tensões na reprodução social, acompanhadas de desespero e de impotência, porque sentidas como dramas individuais, de crianças e de jovens sem rumos, de idosos reduzidos a uma mendicância ou abandono humilhantes, de um clima geral de valetudo social. Criança não vota, aposentado não paralisa processo produtivo, mãe que cria sozinha seus filhos (29% dos domicílios no Brasil têm a mãe como principal responsável) nem tem tempo de pensar nessas coisas.
Assim, a capacidade de consumo das famílias, essencial para dinamizar as atividades econômicas do país, é esterilizada, pois grande parte da nossa capacidade de compra é transformada em remuneração da intermediação financeira. A família brasileira gasta cerca de 30% de sua renda com dívidas, sendo 35% para famílias mais pobres e 19% para famílias mais ricas. A apropriação dos recursos por intermediários trava os investimentos, as atividades produtivas, a dinâmica do desenvolvimento local e o elemento dinamizador tão importante que é o mercado interno.
Assim, enquanto as políticas públicas no Brasil expandem o processo redistributivo e o acesso às políticas sociais, os mecanismos financeiros drenam esses recursos pelo lado da intermediação do consumo e do encarecimento dos investimentos. Assim, entende-se melhor as estatísticas que mostram ao mesmo tempo a saída de milhões de famílias da miséria, enquanto a desigualdade permanece pouco alterada.
O impacto da desigualdade sobre as famílias tem duas dimensões. Primeiro, é preciso constatar que o dinheiro só não traz felicidade para quem já tem dinheiro. Inúmeras estatísticas permitem hoje afirmar que mais dinheiro nas mãos de uma família pobre, que passa a poder comprar o remédio e alimentar melhor os filhos, aumenta muito o bem-estar. Por outro lado, essas mesmas pesquisas mostram que, a partir de uma renda média, que assegura o básico e um pouco de conforto, o aumento de renda não aumenta o sentimento de bem-estar. Isso é muito importante, pois mostra que quanto mais o dinheiro flui para a parte mais pobre da sociedade, mais se torna útil em termos sociais.
Segundo, o impacto econômico também é interessante. As famílias que já têm muito dinheiro – digamos de classe média alta para cima – não aumentam seu bem-estar ao adquirir mais dinheiro. Grande parte da correria por mais dinheiro está aqui motivada pela insegurança e pelos efeitos de demonstração. E nas esferas superiores, dos muito ricos, a coisa é mais interessante ainda: a grande massa de recursos financeiros torna-se fonte de poder político, o que desequilibra os processos democráticos e torna-se também vetor de especulação financeira, deformando os processos econômicos.
Antigamente, justificava-se a concentração de renda dizendo que o pobre consome, enquanto o rico investe. Mas hoje o consumo do pobre ajuda a dinamizar a economia e a gerar melhor qualidade de vida, enquanto a fortuna do rico se transforma em aplicações financeiras (erroneamente chamadas de investimentos) e não em investimento produtivo, isso sem falar dos 520 bilhões de dólares desviados para paraísos fiscais.
Insistimos aqui nessa dimensão econômico-financeira do processo pois é importante que as pessoas entendam que a formação de uma ampla classe de intermediários financeiros, atravessadores cartelizados das atividades econômicas reais, tem tudo a ver com o nosso cotidiano, com a angústia de qualquer família com seu futuro, com o futuro de seus filhos, com o drama de uma pessoa que se enforcou no cartão ou no cheque especial e que não sabe que a ilegalidade está na própria forma de intermediação. Cartel é crime, está na nossa Constituição, artigos 170 e seguintes. É significativa a obsessão com a qual famílias relativamente pobres se endividam para assegurar à nova geração um diploma universitário, forma indireta de garantir o futuro, na ausência de outras garantias confiáveis. Perder o controle de sua poupança representa, para a família, perder o controle sobre seu próprio futuro.
Tem imensa importância a reorientação econômica iniciada com o governo Lula, e continuada com o governo Dilma. São 40 milhões de pessoas que saíram da miséria, 19 milhões de novos empregos formais, expansão de direitos sociais, ampliação das infraestruturas sociais como habitação e saneamento, e assim por diante. Dadas a desestruturação da família e a forma de urbanização, as políticas públicas tornam-se vitais para assegurar a ponte entre as gerações e o resgate dos equilíbrios sociais. O Brasil está avançando no rumo certo, mas temos um grande caminho pela frente, ainda estamos entre as 13 nações com maior desigualdade no planeta. Em termos políticos, a mudança não está sendo fácil. Nas palavras do economista francês Delevoye, “é mais fácil privar o pobre do essencial do que privar o rico do supérfluo”.
Nas sociedades tradicionais, havia certa continuidade na organização da produção, de uma geração para outra. Na era rural de agricultura familiar, a inserção produtiva ocorria naturalmente, pelo fato de haver coincidência do domicílio e do espaço produtivo. O filho ia gradualmente aprendendo com o pai as fainas agrícolas, organizando-se diversas formas de divisão de trabalho na família. Em outros termos, e mantendo nossa visão de que a família constitui um processo de reprodução social, o trabalho representava uma continuidade entre gerações. Essa dimensão não desapareceu. É importante lembrar que o mundo rural representa ainda metade da população mundial, e que um terço da população mundial ainda cozinha com lenha. Às vezes ficamos tão concentrados na ponta da sociedade, nos executivos apressados e nos toyotismos modernos, que passamos a achar que só existe isso, e esquecemos que o mundo articula de maneira complexa eras e ritmos diferenciados. No Brasil, com 17 milhões de trabalhadores, o mundo rural ainda representa um grande setor empregador.
Mas o mundo do nosso convívio é hoje essencialmente urbano. E nas cidades, são relativamente raros os casos de coincidência entre o espaço residencial e o espaço de trabalho, e cada vez mais a casa é para onde se volta cansado à noite, e de onde saem sonolentos pais e filhos para a labuta diária. Há subúrbios que constituem hoje cidades-dormitório, mas de forma geral nossas casas viraram casas-dormitório.
Com a esterilização da poupança das famílias, elas ficam com muito pouca iniciativa sobre seu trabalho. A pessoa não “organiza” suas atividades, “busca” emprego no espaço anônimo da cidade. Com o aprofundamento da divisão do trabalho na sociedade, há empresas especializadas para cada coisa e o acesso ao que nos é necessário na vida cotidiana passa a depender de renda. Não nos damos conta, às vezes, de que na vida familiar o bolo se fazia em casa, frequentemente o pão, quando hoje cada vez menos sequer se cozinha em casa. O que perdemos, em grande parte, é o sentimento de que nossa vida depende de nós, de nosso esforço e gosto de iniciativa. Sentimo-nos empurrados por forças cujos mecanismos nos escapam.
Não é a volta a um passado bucólico que estamos aqui sugerindo. É essencial entender que o espaço da família era um espaço no qual se fazia coisas juntos, como também era o caso das comunidades. O desaparecimento dessa dimensão da organização social gera uma sociedade de indivíduos que rosnam uns para os outros na luta pelo dinheiro, e esquecem que a qualidade de vida é uma construção social. Vencer na vida, da forma como nos apresentam diariamente na televisão, é um processo de guerra contra os outros, e resulta, se tivermos sucesso, em morarmos em um condomínio caro e cercado de guaritas. Sucesso?
Construir uma sociedade civilizada passa por dinâmicas sociais mais complexas, que até as empresas mais retrógradas estão começando a aprender, na linha da responsabilidade social e ambiental.
De certa forma, esse raciocínio nos leva ao fato de que o trabalho não é apenas uma tarefa técnica que consiste em produzir mais o mais rápido possível, buscando o máximo de dinheiro possível. O trabalho deve constituir um elemento essencial da organização do convívio social. A ruptura profunda gerada entre o universo do trabalho, o universo comunitário e a família tende naturalmente a desestruturar essa última. O trabalho, privado da sua dimensão afetiva de relacionamento, na correria do just-in-time, na malvadeza cientificamente assumida do lean-and-mean (literalmente enxuto e malvado), na patologia de algumas ideologias religiosas que nos ensinam que o sofrimento é virtuoso, gera gradualmente um deserto no qual vemos pouco sentido no que fazemos no emprego, a não ser pelo dinheiro do fim do mês, na compra de mais uma televisão, na troca do sofá.
A sociabilidade no trabalho é insuficiente por ser funcional, interessada, presa à hierarquia de quem manda e de quem obedece, eivada de rivalidades, ciúmes, cotoveladas discretas, sorrisos amarelos. A sabedoria popular brasileira, nesse caso, é rica: “cuidado com o calo que você pisa, pode pertencer a um saco que amanhã você terá de puxar”.
Não se trata aqui de um olhar sombrio. Pelo contrário, as tecnologias e os avanços científicos nos permitiriam hoje resgatar outra cultura do trabalho. As barreiras que criamos são rigorosamente artificiais. Por que uma criança vê seu pai e sua mãe desaparecerem diariamente para um espaço misterioso chamado “trabalho”, sem nunca ter oportunidade de visitar suas empresas, de ver o que fazem? É natural a portaria com todas suas seguranças? É natural o constrangimento com que uma mãe recebe no emprego um telefonema do filho, do marido? Afinal, o trabalho deve ser para nós, ou nós para o trabalho?
Muitas pessoas estão mudando seus enfoques no mundo. O executivo que se apresenta com o que temos chamado de “kit-babaca”, com attaché-case, caneta Montblanc, cinto Vuitton e outros apetrechos correspondentes, está sendo gradualmente substituído por gente que se veste à vontade e busca viver, inclusive no trabalho. Muitas empresas têm hoje salas de sesta, para que o trabalhador possa cochilar um pouco quando precise. A redução do leque hierárquico está na ordem do dia. A qualidade de vida no emprego é amplamente discutida. O filme Beleza Americana, ainda que um pouco forçado, faz parte dessa tomada de consciência da forma absurda como estamos sendo organizados para sermos eficientes para a produção e inúteis para a vida, com a família levada de roldão no processo.
A pressão pela redução da jornada de trabalho, essencial para melhorar nossa produtividade e para resgatar o elo temporal entre vida familiar, vida profissional e atividades sociais complementares, está gradualmente voltando a constituir uma reivindicação social de peso, como já foi a luta pela jornada de oito horas há décadas atrás. Que vida familiar podemos esperar de quem vive na periferia, levanta às cinco da manhã, volta às oito da noite e adormece no sofá frente a um programa suficientemente idiota para adormecê-lo? Ter o sábado e o domingo livres é um mínimo para reconstituir nossos potenciais, reatar os laços.
Em Imperatriz do Maranhão, meu pai idoso – já nos noventa – era cuidado por uma simpática velhinha de oitenta que, além de cuidar dele, aproveitava a horta que os netos montaram para cultivar cebolinha, salsa, ervas diversas, que ia todo dia vender em uma cestinha, pela vizinhança. Cultivava assim não apenas ervas, mas um círculo de amigos. Gerava sua própria renda, mas cada um na família ajudava. Meu próprio pai deixou o universo empresarial aos 64 anos, instalou-se em uma comunidade pobre nas margens do Tocantins e passou sua terceira idade, até os 90, prestando serviços paramédicos na região. Nunca o vi mais feliz do que nessa fase, sentindo que fazia coisa útil, com relações intensas com as pessoas, em uma região em que médicos de verdade simplesmente não apareciam. Nem eletricidade havia por lá.
Imagem do passado? Não necessariamente, pois hoje com as novas tecnologias há amplos espaços de colaboração familiar ou de vizinhança, resgatando novas formas de articulação do trabalho, novas solidariedades. Na realidade, temos pela frente o imenso desafio de adaptar nossas políticas a uma massa de idosos que, depois de cumprida sua fase dita “idade ativa”, ainda têm 20 ou 30 anos de criatividade, interesses, relacionamentos, contribuições e necessidades diferenciadas. Os estudos que surgem sobre a situação da terceira-idade nos grandes centros urbanos apresentam situações simplesmente trágicas. Terceiraidade não é uma sala de espera. Meu pai e sua vizinha criaram seus espaços, mas a verdade é que, no conjunto, sequer pensamos na reorganização social que essa extensão da vida exige, particularmente nos grandes centros urbanos. O desafio vai muito além da discussão sobre déficit da previdência.
Na cidade de Lausanne, na Suíça, a prefeita decidiu mudar o tratamento dado ao idoso que vive só: em vez de colocá-lo em um asilo, com enfermeira, papinha e televisão, fez com a ajuda de estudantes universitários uma pesquisa que lhe permitiu identificar vizinhos de cada idoso, dispostos a ajudá-lo. Com um pequeno salário e um pouco de treinamento, organizou na cidade uma rede de solidariedade que lhe permitiu economizar recursos públicos e melhorar o capital social, o simples gosto de vida das pessoas. Não há dúvida que uma enfermeira especializada, em uma clínica bem equipada, saberia ministrar a papinha de maneira mais eficiente (e com custos muito maiores, o que contribui para aumentar o PIB). Mas, é disso que se trata? Na Polônia, há prédios onde o andar térreo é reservado para pequenos apartamentos onde os idosos podem ficar perto da família, que mora nos andares de cima, e ao mesmo tempo guardar certa privacidade. Organizar o convívio social é assim tão complicado?
De certa maneira, trata-se de desarticular um mecanismo perverso pelo qual o acesso às coisas elementares da vida exige cada vez mais dinheiro, as famílias devem se organizar para maximizar a renda, os filhos já entram na primeira infância na filosofia da competição, pois estão se preparando para a vida carregando suas imensas sacolas de material escolar. Perde-se o convívio familiar, a sociabilidade comunitária, gera-se um bando de zumbis eficientes que não param mais para perguntar o mais evidente: estamos todos correndo para onde?
Trata-se, evidentemente, de inverter a equação. Não devemos organizar nossas vidas para o trabalho, mas organizar o trabalho para que nossas vidas sejam agradáveis. A economia é um meio, não um fim.
Utopia? Há duas décadas, ainda se media os países apenas de acordo com o PIB, na linha das estatísticas do Banco Mundial. Os indicadores de desenvolvimento humano (IDH), a partir de 1990, passaram a comparar também a qualidade de vida, ao acrescentar às medições dados de saúde e de educação. Com a metodologia CalvertHenderson, no ano 2000, passou-se a avaliar a eficiência dos Estados Unidos a partir da qualidade de vida de seus cidadãos em torno de 12 grupos de indicadores: educação, emprego, energia, meio-ambiente, saúde, direitos humanos, renda, infraestrutura, segurança nacional, segurança pública, lazer e habitação. Hoje temos uma explosão de indicadores, como o FIB (Felicidade Interna Bruta) do Butão e o Happy Planet Index da Inglaterra, e economistas de primeira linha, como Amartya Sen, Joseph Stiglitz e JeanPaul Fitoussi, sistematizando propostas renovadoras.
Isso nos leva ao conceito de produtividade sistêmica. Um plano de saúde, ao maximizar o ritmo de rotação de pacientes por médico, está gerando um taylorismo social que sem dúvida se mostra muito eficiente em termos da unidade empresarial – visão microeconômica. Essa eficiência é medida em termos de rentabilidade da seguradora ou do banco que controla o conjunto. E o resultado prático, em termos sociais, é uma saúde deficiente, pois o que asseguraria a produtividade sistêmica da saúde seria muito mais a visão preventiva do que o luxo das instalações hospitalares. Em outros termos, quando hoje falamos em responsabilidade social e ambiental das empresas, levamos cada administrador a levantar um pouco os olhos, para além dos muros da empresa, e pensar simplesmente: isso é útil para a sociedade?
O Instituto Souza Cruz publicou, em janeiro de 2003, Marco Social: Educação para Valores. O Instituto Souza Cruz é mantido pelo grupo empresarial Souza Cruz que, por sua vez, pertence à British American Tobacco, que investe anualmente centenas de milhões de dólares em publicidade para convencer jovens a fumar: a população alvo predileta é a de 14 anos, quando o vínculo com a nicotina se torna praticamente assegurado para o resto da vida. A publicação, bastante luxuosa, começa com uma citação de Anísio Teixeira sobre valores, e a diretora do Instituto, no capítulo “Educação para Valores”, afirma que Flávio de Andrade, presidente da Souza Cruz, “nutria uma grande preocupação com o acesso de crianças e adolescentes menores de 18 anos a cigarro, álcool e drogas ilícitas”.
Quem não ficaria comovido? Além disso, um economista contatado pela empresa nos saberá explicar que a Souza Cruz gera empregos, dinamiza a plantação de fumo, provoca a expansão de clínicas de tratamento de câncer, estimula a venda de produtos para branquear os dentes e patrocina belíssimas corridas de Fórmula 1. Houve até um relatório, na República Tcheca, que demostrou que o cigarro, ao acelerar a morte dos idosos, reduzia o déficit da previdência social e, portanto, melhorava as contas nacionais. O que não se faz pela economia! Quando o relatório vazou, a empresa pediu desculpas formais, mas não mudou a prática. Estão aumentando o PIB, mas é esse o objetivo?
A visão que queremos aqui esboçar é que a transformação da família pertence a um conjunto de mudanças mais amplas, e que não se trata apenas de lamentar sua dissolução, trata-se de repensar o processo de rearticulação de nosso tecido social.
No belíssimo filme Janela da Alma (2001), Wim Wenders, que já nos deu tantas obras primas de cinema, faz uma afirmação profunda: “Humanity is craving for meaning” – a humanidade anseia pelo sentido das coisas. De certa maneira, o sentido das coisas se resgata em uma articulação mais ampla dos diversos universos – do indivíduo, da família, da comunidade, do trabalho, das esferas econômicas, políticas e culturais. Os sentimentos de perda de iniciativa e de controle sobre nossas vidas, de individualismo feroz, de vale-tudo por dinheiro, são particularmente absurdos pois o enriquecimento da sociedade permitiria, justamente, dispormos de mais tempo para a família e de mais convívio social em clima menos violento.
Nosso sistema sabe aumentar a produção, ou pelo menos sabia, antes do domínio dos gigantes financeiros e da globalização selvagem. Mas a organização social capaz de tornar esse aumento de produção socialmente útil depende de dinâmicas capazes não de eliminar, mas de regular de maneira inteligente as dinâmicas de mercado. A vida não se resume a uma corrida desesperada para equilibrar a conta no banco com as contas do shopping. A construção da qualidade de vida – inclusive a sobrevivência da família – constitui um processo de articulação social que não resultará automaticamente nos mecanismos de mercado ou no eventual enriquecimento individual. Um indivíduo pode resolver seu problema competindo e enriquecendo, mas a sociedade só resolve os seus colaborando, gerando mecanismos em que há espaço para todos.
Não é tão difícil assim colocar-se no lugar do jovem. Sai da escola sem nunca ter visitado uma empresa, uma repartição pública, uma organização da sociedade civil. A separação radical entre as fases de estudo e do trabalho produz uma geração de jovens desorientados, à procura da sua utilidade na vida. Se cruzarmos essa situação com as dinâmicas do trabalho vistas acima, a ausência de perspectivas torna-se muito forte, a não ser em alguns grupos privilegiados. Na realidade, no processo produtivo em que os conhecimentos passam a desempenhar um papel preponderante, em vez de estudo e trabalho serem etapas distintas da vida, devem crescentemente constituir um processo articulado pelo qual a aquisição de conhecimentos e sua aplicação produtiva devem enriquecer-se permanentemente.
Sentir-se inútil em uma fase da vida em que o jovem chega disposto a fazer e acontecer gera, sem dúvida, um sentimento de profunda frustração. Poder fazer alguma coisa útil parece constituir um favor, alguém “deu” um emprego. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que, no conjunto, o who you know (quem você conhece) tornou-se um fator mais importante de avanço profissional do que o what you know (o quê você conhece, suas competências). O mundo para o jovem passa a ser visto como um universo opaco e fechado, gerando desânimo e passividade, e frequentemente revolta e violência.
Essa tendência tem de ser colocada em uma perspectiva mais ampla. Nossas crianças e jovens são criados em um referencial de família muito frágil: com os dois pais no trabalho, o trabalho distante da casa, casais frequentemente separados, o silêncio no trinômio sofá-televisãojoguinhos – constrói-se assim muito pouco balizamento entre o bem e o mal, muito pouco sentido de vida.
Outro universo que contribuía muito para a construção de valores era a rua, a vizinhança. Ali, não era ainda o mundo, mas também já não era a família. Ali a criança e o jovem testavam sua presença social, delimitavam gradualmente os valores da amizade, o peso das rivalidades, construíam seus espaços de sociabilidade. Hoje, nenhuma mãe em sã consciência diz à criança que vá brincar na rua. Fica sossegada quando as crianças estão sentadas no sofá, comendo salgadinho e vendo “Vale tudo por dinheiro”. Porque na rua está o perigo, as drogas, as gangues, os acidentes de carro, o medo. Não inserimos mais as crianças no mundo, buscamos apenas protegê-las. E quando chega o momento inevitável de sua inserção, desabam sobre elas desafios difíceis de suportar.
Os pais, perdidos, entram em intermináveis discussões sobre se devem ser mais permissivos ou colocar mais limites, sorrir ou gritar, e terminam, quando têm dinheiro, lamentando-se com o analista. O analista pode sem dúvida ajudar quando os problemas são individuais, mas não resolverão grande coisa quando se trata de um processo socialmente desestruturante. A escola pequena, de bairro, frequentada por pessoas que convivem de uma maneira na escola, e de outra nas ruas da vizinhança, mas pertencendo ao mesmo tecido de relações sociais, era outro espaço de construção de referências. Boa parte disso subsiste no interior. Nas grandes cidades, e frente a uma construção escolar na qual se buscam absurdas economias de escala (quanto maior, mais barato), gera-se um universo de gente que só se encontra na escola. Os universos sociais do local de residência e do local de estudo só se cruzam eventualmente. Na própria classe média, é patético ver mães que passam horas no trânsito para levar uma criança para brincar com outra no outro lado da cidade, porque já não aguenta a solidão em casa. E no outro lado da cidade, o coleguinha terá os mesmos videogames, o mesmo “Vale tudo por dinheiro” na televisão. Se juntarmos os efeitos de desestruturação do referencial familiar, da ausência do referencial de vizinhança, da perda da presença social local da escola, e acrescentarmos o cinismo dos valores martelados horas a fio na televisão, que valores queremos que os jovens tenham?
Os pais ficam indignados: eles bebem, eles fumam, eles se drogam, eles transformam o sexo numa aeróbica banalizada, eles não veem sentido nas coisas. O que fizemos para dar sentido a suas vidas? Todos nós estamos ocupados em ganhar a vida, em subir nos degraus absurdos do sucesso. Como as crianças vão entender nosso sacrifício como útil?
A compreensão do absurdo que é se matar de trabalhar para construir uma vida sem sentido, ainda que com a garagem ostentando um belo carro e entulhada de esteiras de ginástica e outras relíquias de entusiasmos consumistas passageiros, sem tempo para fazer as diversas coisas que poderiam ser agradáveis, ou belas, filtra gradualmente para dentro de nossas consciências, ainda que continuemos todos a correr sem rumo. Será que nossos filhos realmente não veem o absurdo de nossas próprias vidas? E que rumo isso aponta para eles? A verdade é que a vida reduzida a uma corrida individual pelo sucesso econômico, com a ilusão de que, tendo sucesso e, portanto, dinheiro, compraremos o resto, é um absurdo que nos levou à civilização de guetos de riqueza e de miséria que hoje vivemos.
É significativo que em muitos lugares jovens, e até crianças, às vezes com apoio dos professores – outra classe à procura do sentido do que ensina – estão arregaçando as mangas e começando a tomar iniciativas organizadas. Vimos na Itália um movimento de crianças pela recuperação das praças. Um filme-reportagem feito pelas próprias crianças mostra a passeata, a negociação com a prefeitura e o resgate progressivo de praças antes transformadas em estacionamento, para que voltem a ter água, árvores, espaço para brinquedos e jogos, uma dimensão de estética, de lazer e de convívio. Em muitas cidades já há câmaras-mirins, e não se podem aprovar projetos de espaços públicos sem o aporte do interesse organizado das crianças. Em muitos lugares, foram organizados trajetos seguros, acompanhando as principais rotas das crianças entre as escolas e lugares de lazer, para melhorar sua mobilidade e o sentimento de liberdade em sua cidade: a tecnologia é simples, são aqueles passinhos pintados na calçada, semáforos, algum reforço de policiamento. O que essas experiências têm em comum é o sentimento, por parte das crianças, de estarem recuperando seu direito à cidade, à cidadania.
Em Valparaíso, vimos uma experiência de crianças de rua que, com o apoio de uma ONG, passaram a resgatar os espaços vazios de um bairro, a organizar suas próprias bandas de música e eventos culturais, a ponto de hoje as seis escolas formais do bairro terem se associado ao projeto e desenvolverem atividades de resgate dos espaços públicos. Fazem aulas sobre meio ambiente, melhorando o próprio meio ambiente, e estudam ciências sociais, melhorando o ambiente social do bairro. Ali também a cidade é deles, e fazer uma coisa útil e prazerosa não é o resultado de um emprego que lhes “dão”, mas de uma iniciativa que lhes pertence.
O que isso aponta, na realidade, é a necessidade de evoluirmos de uma visão em que a organização social se resume a um Estado que faz coisas para nós, e de empresas que produzem coisas para nós, para uma visão em que a sociedade organizada volta a ser dona dos processos sociais e articula as atividades do Estado e das empresas em função da qualidade de vida que procuramos. A expansão das organizações da sociedade civil, a força do terceiro setor, as políticas de desenvolvimento local (e em particular do bairro), o resgate das funções sociais do Estado, o surgimento da responsabilidade social e ambiental das empresas, a crítica às grandes corporações de especulação financeira, do monopólio de produtos farmacêuticos, de comercialização de armas, o próprio surgimento muito mais amplo da noção de que um outro mundo é possível, pertencem todos a um deslocamento profundo de valores que estamos começando a sentir na sociedade em geral.
Como indivíduos, podemos melhorar nossa casa, batalhar o estudo para nossos filhos, comprar um carro melhor. Mas as mudanças sociais dependem de organização social. O sentimento de desorientação é sentido como sofrimento individual, mas as raízes e as soluções são mais amplas.
Curiosamente, quando fazemos o que todos fazem e não nos sentimos felizes, conseguimos nos convencer de que os culpados somos nós. Parece que não somos normais. Mas é importante entender que o sentimento de frustração é geral. Manifesta-se nesse sentimento difuso de perda de controle sobre nossa realidade, sobre o que queremos fazer, sobre o mundo que nos cerca. O trabalho não é sofrimento: batalhar o futuro, fazer coisas que dão certo, ainda que com mil dificuldades, brincar com os amigos, tudo isso é essencial para nosso senso de equilíbrio.
O que isso sugere, de maneira ampla, é que as dinâmicas econômicas atuais geram simultaneamente mais produtos para as elites e menos sentimento de realização individual. O que nos venderam como visão de mundo é que a felicidade consiste em ter em torno de nós apenas o esposo ou esposa e os filhinhos, todos em idade simpática, um apartamento de dois quartos, sala, sofá e televisão. As opções de vida são relativas à cor do sofá, ao modelo da geladeira.
É importante ver a dupla face desse problema. Primeiro, todos devem ter o direito a ter os dois quartos, a saúde, a comida na mesa. Inclusive, assegurar o necessário a todos é uma condição preliminar para que possamos viver a vida em paz. Já dizia Marat na revolução francesa: “nada será legitimamente teu, enquanto a outrem faltar o necessário”. Esse objetivo consiste sem dúvida em um ideal social maior pelo qual temos de batalhar. Estamos felizmente evoluindo, com os inúmeros programas de renda mínima já funcionando em muitos países, para o enfrentamento sistemático e organizado das situações críticas, e o Brasil tem avançado de maneira positiva.
Mas esse “necessário” não é suficiente. Quando temos os dois quartos e o sofá, a primeira coisa que queremos fazer é sair, é fazer alguma coisa. E esse “fazer alguma coisa” envolve outras pessoas, convívio, festas, brincadeiras, esporte, coisas que nos façam sentir vivos. A sociedade atomizada em microunidades, que descartou os idosos para o asilo, os deficientes(doentes?) mentais para o manicômio, os revoltados para a cadeia, os pobres para a periferia, os ricos para condomínios cercados, é uma sociedade desintegrada que parou de assumir a construção de seus próprios espaços sociais e apenas administra privilégios.
Entender o desafio da pobreza – coisa que devemos fazer sistematicamente – pode ser mais fácil do que entender a desarticulação social e o mal estar que se generaliza. Esse sistema leva, de um lado, a uma privação, por parte de grande parte da população mundial, dos bens essenciais para uma sobrevivência com um mínimo de dignidade, e por outro lado, gera um perfil de produção e formas de organização socioeconômica que não trazem respostas aos que saíram dessa privação. Quando vemos as cidades-dormitórios, os bairros, sem uma praça ou áreas de sociabilidade, lazer e convívio, os rios ou riachos transformados em esgotos, os condomínios fechados com suas cercas eletrificadas, arames farpados e guardas privados, temos de ir além do problema da injustiça da concentração de renda e de riqueza, de se privar os pobres do essencial, já que a própria lógica é absurda.
Hoje as grandes empreiteiras de São Paulo, por exemplo, formam um pacto corrupto com políticos e levam à construção de uma cidade inteiramente organizada em função do automóvel, chegando, entre túneis e elevados, a formar vários andares de vias, enquanto lutam contra qualquer uso público do espaço urbano, considerado “desperdício”. Um rio limpo não gera contratos, enquanto um rio poluído gera imensos contratos de despoluição, de desassoreamento, de canalização. A lógica das habitações é criar o máximo de construções para pequenas famílias, desarticulando o convívio entre gerações. De certa maneira, a capacidade técnica e gerencial das empresas evoluiu, mas a redução dos objetivos ao lucro imediato torna esses avanços socialmente pouco úteis. Isso porque a empresa não pensa no convívio social e nas infraestruturas correspondentes, mas na capacidade de compra individual do cliente.
Vender o “ninho” amoroso dá lucro. No entanto, parece que o comportamento amoroso se retrai. É viável uma mulher sentir um grande ardor sexual por seu simpático barrigudo de chinelo e camiseta, sentados anos seguidos no mesmo sofá, vendo as mesmas bobagens da TV? Trancar um casal em um casulo é uma ideia romântica para vender como publicidade, e permite vender muitos apartamentos, mas é mortal para o convívio matrimonial e a sobrevivência da família.
Estamos aqui no limite do quanto um economista pode responsavelmente penetrar em áreas alheias, ainda que faça parte da tradição do economista poder dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto. O que aqui tentamos delinear é o fato das dinâmicas econômicas poderem ter um imenso impacto sobre a vida pessoal, a felicidade da família e até nosso interesse amoroso.
Não é a família que está doente: é o processo de reprodução social e econômico que se tornou absurdo, levando à erosão da família.
O programa americano de TV Sixty Minutes levou ao ar uma reportagem sobre o fast-food, a indústria do hambúrguer. Essas empresas pesquisaram e concluíram que a excitação das papilas gustativas na criança está centrada no açúcar, na gordura e no sal. Assim, temos o refrigerante que acompanha o hambúrguer e as batatas fritas. Até aí, tudo bem. Mas as grandes redes como Burger King, McDonalds e outros estão fazendo gigantescas campanhas de televisão para fazer as crianças preferirem esse tipo de comida, e constituem hoje as maiores redes de distribuição de brinquedos e outros brindes para estimular esse consumo. Hoje, a grande ofensiva é para se instalar o fast-food nas escolas, banindo as nutricionistas. Tentar oferecer frutas, legumes e outras comidas tradicionais ao lado desse tipo de estabelecimento não é fácil.
O resultado prático é que hoje, entre hambúrguer e salgadinho, a obesidade atinge 30% dos jovens norte-americanos. Não é difícil imaginar o que é a vida de uma menina que, com 13 anos, é obesa. Ou o que essa vida será. O programa entrevistou o dono de uma grande empresa de publicidade de fast-food que visa o público infantil, e inclusive utiliza crianças na geração da publicidade. Perguntado se não achava covardia empurrar esse tipo de comida para crianças que precisam de alimentação variada para crescer normalmente, o dono da empresa, um psicólogo, corrigiu: “nós não empurramos produtos, nós informamos as crianças para que possam fazer uma escolha responsável”.
No conjunto, isso significa que somos empurrados sim a nos comportar de acordo com as necessidades das empresas, com os interesses econômicos, em vez das atividades econômicas responderem às nossas necessidades.
Não é à toa que os gastos mundiais com publicidade atingem somas astronômicas,hoje da ordem de um trilhão de dólares. As empresas gastam esse dinheiro porque a publicidade funciona. Não porque somos bobos, mas porque somos influenciáveis, provavelmente uma das características mais ricas do ser humano, vinculada à sensibilidade.
É patético as pessoas caminharem solitárias sobre uma esteira, que tiveram que comprar e que depois de uma semana ficará parada em um canto, porque já não há mais espaço para jogar bola na vizinhança. Qual o sentido de pedalar em uma bicicleta montada na garagem quando poderíamos utilizar bicicletas de verdade para passear, através de ciclovias e da organização do trânsito? Fabricamos tanta coisa inútil, geramos tanto desperdício, com um ritmo de trabalho que nos esfola e nos priva da simples alegria de viver!
Havia um tempo em que os brados pela mudança vinham das esquerdas. Hoje, um prêmio Nobel de economia como Stiglitz, que foi economista chefe do Banco Mundial, diz que o sistema como está não pode continuar (Stiglitz, 2002). Hazel Henderson, uma das economistas mais importantes do mundo, diz que a competição não serve mais como regulador geral da economia, e desenvolve a visão do win-win, literalmente ganha-ganha, mostrando que se pode desenvolver um sistema no qual todos ganham (Henderson, 2000). David Korten, que denuncia o absurdo gerado pelos interesses das empresas transnacionais, não vem de movimentos de contestação, mas dos programas americanos de ajuda ao desenvolvimento, e elaborou uma das críticas mais bem estruturadas da forma de organização econômica que hoje prevalece (Korten, 2000). J. K. Galbraith aponta para uma “sociedade justa” (Galbraith, 1996). Peter Drucker, o antigo guru da administração empresarial, dirigiu uma organização não governamental em busca de rumos da “sociedade pós-capitalista”. Ele fez uma constatação óbvia, mas poderosa: “não haverá empresas saudáveis numa sociedade doente”.
A lista é muito grande. As pessoas que conhecem as dinâmicas do sistema, porque ajudaram a montá-lo, hoje tendem a tomar um pouco de recuo, buscam o sentido das coisas. O sentido é relativamente claro: a economia deve servir-nos, para que tenhamos uma vida com qualidade, e não constituir um mecanismo complexo acessível apenas aos espertalhões, que termina por nos jogar em conflitos entre ricos e pobres, por gerar dramas ambientais, criando angústia e insegurança.
Essa mudança passa por uma alteração das formas de organização social. Em particular, temos de organizar nossas cidades por meio de sistemas descentralizados e participativos de decisão, pois sem isso continuaremos vítimas dos intermediários financeiros, incorporadoras, imobiliárias, empreiteiras e outros especuladores urbanos. Não se trata aqui apenas do fato de que é um processo corrupto: é um processo corrupto que organiza a sociedade de forma pouco inteligente.
E não basta reorganizar nosso espaço urbano para que seja user-friendly, como dizem hoje os informáticos. Temos de reorganizar o tempo, principal recurso não renovável de que dispomos, para viver de maneira agradável e inteligente. Reduzir a jornada para 6 horas já seria um bom passo, abrindo possibilidades para o convívio, o lazer, a cultura, a família, dinamizando um consumo mais rico e mais inteligente nas áreas de cultura, lazer, esporte e turismo.
Temos também de aprender a nos organizar. A máquina do Estado e o mundo empresarial são insuficientes, simplesmente porque ambos devem servir à sociedade, e uma sociedade não organizada não tem como impor suas prioridades. As ONGs, as organizações de base comunitária e as associações dos mais diversos tipos precisam desempenhar um papel chave e tornar-se parte do cotidiano de cada um de nós.
Temos de democratizar a informação. A descentralização das formas de comunicação, com rádios comunitárias e emissoras locais de TV constitui um elemento essencial de criação de um vínculo local, de promoção cultural, de integração dos diversos grupos e atores, de divulgação de iniciativas. A principal novela é nossa própria vida, e vale a pena.
Temos de criar mecanismos que nos permitam resgatar o controle de nossas poupanças. Há inúmeros exemplos de bom funcionamento de formas inovadoras, que vão desde as formas socialmente responsáveis de aplicações financeiras desenvolvidas nos Estados Unidos, até os placements éthiques (aplicações éticas) na França, o crédito solidário no Brasil, o microcrédito de Bangladesh, ou as caixas de poupança locais na Alemanha que hoje gerem mais de 60% de todas as poupanças da população, aplicando os recursos na própria comunidade que os gera. Os bancos trabalham com nosso dinheiro, e devemos aprender a fazê-lo valer assegurando que nossas poupanças sejam utilizadas em iniciativas socialmente úteis, e não em especulação.
E temos, obviamente, de fechar o imenso fosso social que o processo capitalista está gerando entre ricos e pobres. Não haverá paz social, não haverá tranquilidade nas ruas, não haverá convívio enriquecedor nas comunidades enquanto dezenas de milhões de pessoas continuarem em uma miséria dramática e revoltante.
E a família? A família tem justamente de ajudar na reconstrução desse entorno econômico, social, urbanístico, trabalhista e cultural que a viabilize. Não bastam discursos ideológicos de que a família é o esteio da sociedade. É preciso viabilizá-la, e com isto viabilizar a própria sociedade desnorteada que criamos.