Mais uma história, uma não, algumas histórias de minha vida, de minha eterna infância. Tive uma infância maravilhosa! Assim começo o primeiro parágrafo do meu primeiro livro “Demência, o resgate da ternura”. Sim, foi uma infância maravilhosa, não aquele sonho idílico de histórias de fadas, borboletas azuis e pozinhos de estrelas, isso não. Sei que nem todas as infâncias são maravilhosas, para dizer a verdade, creio que bem poucas. Sei que as crianças não estão livres de sofrimento, tragédias e lágrimas. Lágrimas e sofrimentos, tive sim, tragédias não. Minha infância foi boa porque eu vivi rodeada de montanhas, brincava em vastos quintais, subia em árvores, a casa de minha avó era ao lado da nossa casa, ganhei muitas chineladas e puxões de orelha. Tudo o que uma criança recebia naquela época remota. Sobrevivi. Confesso que vivi.
Uma de minhas mais remotas lembranças é meu pai contando histórias para nós, eu e minha irmã, na hora de dormir. Meu pai não era aquele pai conhecedor das profundezas e sutilezas de um coração infantil. Ele contava as histórias tomando por base sua própria história de menino na Água Limpa, nada omitindo, doendo a quem doesse. Na história que ouvíamos dele, Aspásia e Amália eram as protagonistas e logo sacamos que as meninas éramos nós.
Pois bem, Aspásia e Amália foram muito felizes na fazenda onde moravam, porém um belo dia, seus pais arrumaram suas malas e elas vieram morar na cidade para estudar. Esta parte da despedida das meninas foi o ápice do sofrimento que meu pai descrevia com uma impressionante riqueza de detalhes, era o cão chupando manga, como minha enteada costuma brincar. A doce vida de meninas no campo “was over”, estava no fim. As meninas choravam, soluçavam, protestavam, em vão. E nós ouvindo com atenção. O curioso é que nós nunca moramos na Água Limpa. Pensando bem, em sua simplicidade, meu pai foi mega verdadeiro contando sua própria história e não nos ocultando o que conheceríamos de sobra ao longo da vida: angústia de separação.
Outra história que meu pai costumava contar era a história de Jesus, desde menino até a morte e morte de cruz. Reconheço que a morte na cruz poderia ser omitida, mas meu pai era assim, simples e puro. Que saudade de meu pai e suas histórias tristes e reais como é a vida.
Daí a pouco tempo, eu fui separada da minha mãe e irmãos, inclusive de irmã mais velha, por conta de uma tuberculose que os atingiu. Vieram se tratar em Itajubá e eu fiquei morando com minha tia. Minha vida era ficar na janela por meses vigiando o dia e hora em que voltariam, disso me lembro com muita nitidez. Acabou tudo bem, todos foram curados e eu voltei para o seio da família.
Lembro-me de quando tivemos visitas de primos da minha mãe que eram de Belo Horizonte. Entre esses primos estava um casal que dormiu no quarto de costura. Eu, de olho vivo em tudo e todos. Careca de saber que éramos proibidas de ficar de porta trancada, fui segredar para minha mãe que o casal havia trancado a porta e já havia um tempão que os dois estavam trancados lá dentro. Minha mãe riu de mim abertamente, explicando que eram casados, portanto, não tinha importância. Todos riram muito. Foi quando aprendi que casado pode ficar trancado no quarto. Nunca me esqueci.
Quando escrevi “Escrava do Poema” tomei por base um episódio de minha vida de menina quando fui declamar um poema em festa de Dia das Mães. Foi no Clube Recreativo e Literário de Pedralva. Foi à noite, lembro-me direitinho. Minha mãe estava presente, é claro. E eu, lá nos bastidores, ensaiando, falando, repetindo. Em minha ansiedade, num desejo absurdo de fugir daquela empreitada, olhei pelo basculante do recinto e flagrei na rua em frente uns meninos felizes da vida que brincavam de pés no chão. Eu invejei a sorte dos meninos e me senti a própria prisioneira condenada a poucos minutos antes de subir ao cadafalso. Jurei que no dia seguinte eu também brincaria como eles, sem poema algum para declamar. A saudosa e bonita Dona Cléa percebeu minha aflição e foi super carinhosa me animando com palavras gentis. Chegou a hora e eu declamei com perfeição. Palmas e mais palmas. Ah como gostei das palmas. Embora tão menina ainda, percebi que eu era escrava do poema e das palmas também. Será que a gente na vida é escrava de tudo que tem?
Falar da infância deixa na gente uma certa melancolia, afinal, lá foi projetada nossa primeira visão de mundo, a que virá atrelada a nós como a cauda de um cometa. Arrastamos esta visão pela vida afora, ora nos alegrando com ela, ora nos angustiando. Faz parte.
Por Misa Ferreira
Autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia, Na casa de minha avó e Ópera da Galinhinha: Mariquinha quer cantar. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.