Hoje eu gostaria de apresentar um personagem da História da arte cujas obras costumam encantar igualmente, e muito, tanto os especialistas quanto o público diletante em geral. Falo de um pintor holandês que viveu no século XVII e que se chama Johannes van der Meer, mais conhecido por Jan Vermeer ou simplesmente Vermeer. Ele nasceu, morou e trabalhou por toda a sua vida na cidade de Delft, muito conhecida por sua produção cerâmica. Parece nunca ter deixado aquela cidade. Nascido em 1632 e morto em 1675, viveu somente quarenta e três anos.
Infelizmente o que nós sabemos sobre sua história é muito pouco. A documentação existente é escassa e confusa. Essa falta de informações precisas aliada à beleza de sua obra fez surgir diversas especulações sobre o artista, de modo que ele acabou por se tornar um dos grandes mitos da História da arte. De sua vida profissional sabemos pouca coisa; de sua vida pessoal, quase nada. Podemos apenas especular – e assim alimentar a figura mítica – sobre como seria sua personalidade e seu ambiente a partir do olhar para suas pinturas.
Os historiadores dizem que a vida de Vermeer não foi fácil, talvez até imensamente sofrida. Ele viveu no chamado século de ouro da Holanda: um momento de grande prosperidade econômica que, enquanto enriquecia o país, fez surgir um excedente de artistas que competiam arduamente entre si, buscando se destacar e assim sobreviver. Como país protestante, não havia na Holanda o comitente absoluto da arte dos países católicos: a Igreja. Assim, Vermeer viveu em meio a inúmeras e sérias dificuldades financeiras, uma vez que o trabalho como pintor não lhe permitia ganhar o suficiente para manter a enorme família: esposa e, pelo menos, onze filhos. Não sabemos o número exato, mas é certo que na ocasião de sua morte ainda restavam oito filhos menores.
Além da pintura, ele trabalhou com o comércio de objetos de arte e, com a morte de seu pai, herdou uma taverna, o que lhe ajudou a ganhar um pouco mais. Mas, mesmo assim, não era o suficiente, e em alguns anos ele acumulou várias dívidas. Com sua morte, a esposa, Catharina, uma mulher vinda de família rica, agora sozinha e com os oito filhos menores, herdou todas as suas dívidas. Muitas das pinturas do marido foram então dadas em garantia de pagamentos, inclusive de comida. E essa é uma das possíveis razões pelas quais sua obra se dispersou e perdeu.
Vermeer quase nunca assinava seus quadros e, quando assinava, não o fazia da mesma maneira. Por isso, suas obras são identificadas pela análise do estilo por especialistas. E nem todos concordam entre si. Atualmente, o conjunto da obra de Vermeer considerado autógrafo (original) é bem pequeno, e pode ser reduzido a um número que varia entre vinte e um e trinta e cinco quadros. Mas são vários os casos de falsificações e de atribuições errôneas.
Enquanto viveu, Vermeer foi muito bem considerado como artista, mas foi logo esquecido após a morte e assim permaneceu por duzentos anos. Sua fama só foi restabelecida na segunda metade do século XIX, ao mesmo tempo em que os impressionistas faziam sua aparição no cenário artístico. Isso pode ser explicado por uma afinidade de sensibilidades no trato da interpretação visual do mundo entre esse holandês do Seiscentos e os impressionistas. Deduz-se que Vermeer tenha sido um homem curioso e interessado pelos progressos científicos. Na elaboração de suas obras, ele empregou um dispositivo que projetava a imagem que tinha à frente diretamente na tela a ser pintada: era a câmera escura.
Esse dispositivo (uma espécie de ancestral da máquina fotográfica) permitiu a criação de efeitos de ótica específicos como, por exemplo, a amplificação dos primeiros planos das composições e a divisão da luz, que se espalha sobre as superfícies em inúmeros e pequenos pontos [fig.2b e 4b] . A ‘descoberta’ de Vermeer à mesma época da ascensão do movimento impressionista não é casual: a representação da luz que dilui os contornos dos objetos é o grande tema impressionista e elemento muitíssimo importante também na obra vermeeriana.
Quanto aos assuntos pintados por Vermeer, eles fazem parte do leque aberto pelas inovações do barroco protestante, onde a distância das tendências grandiloquentes da comitência católica favoreceu amplamente o desenvolvimento de temas pouco usuais até então e anteriormente menosprezados: a paisagem, as naturezas-mortas e a chamada ‘pintura de gênero’: imagens do cotidiano de seres comuns, destituídas de qualquer heroísmo. À exceção de duas paisagens urbanas (duas vistas de Delft), Vermeer pintou apenas cenas de gênero, nas quais podemos encontrar eventualmente a inserção dos arranjos das naturezas-mortas. Vejamos algumas de suas pinturas.
Nos espaços internos das casas, os atos são descobertos pela luz que brinca suavemente. Uma luz sempre difusa, branda, filtrada por uma janela invariavelmente colocada à esquerda da composição e, muitas vezes, oculta, fora dos limites do quadro. Esta luz inunda os ambientes, cintila de modo fugaz aqui e ali, revelando o metal, o vidro, a pérola, o veludo, o cetim… e enquanto descobre os volumes, preenche os espaços, reveladora de um universo da sensualidade, da materialidade, que nos pede para ser tocado, analisado, percebido e vivido. O detalhe é quase da ordem da preciosidade. Nós nos divertimos e nos encantamos nesse mundo naturalista e que também traz consigo a herança realista da tradição da pintura dos flamengos.
Vermeer, porém, não se perde em minúcias, em particularidades, e nós logo abandonamos a contemplação desse universo objetivo demais ao perceber que as figuras representadas, as pessoas que habitam seus pequenos quadros, são plenas de vida espiritual, mental. E então desejamos saber onde estão seus pensamentos e com quem estão seus sentimentos.
Acredito que a atração que Vermeer incita ainda hoje – e isso é unânime! Não conheci ninguém, até hoje, que não gostasse dele – é devida a essa faceta intimista que acreditamos ser intangível. Talvez, melhor do que Rembrandt, seu contemporâneo, ele tenha tido o maravilhoso dom de descortinar sentimentos e pensamentos escondidos, quase secretos, quase segredos. Ao silêncio fortíssimo, à tranqüilidade dos gestos delicados, langorosos e doces, ele contrapõe a mais intrigante agitação do espírito: sentimentos contidos são entrevistos em devaneios que esvoaçam, rápidos, ligeiros, sugerindo dúvida, apreensão, expectativa, saudade, desejo…
Uma das obras mais tocantes de Vermeer é das mais ricas de sugestões: a “Mulher de azul lendo uma carta” [fig.1] traz a personagem feminina de pé, como um grande volume rotundo – pois ela está em estado de gravidez adiantada – no centro de um espaço cúbico assinalado por diagonais (a mesa e a cadeira enviesadas), que marcam a profundidade típica da pintura barroca, e por sugestões de continuidade para fora da composição (o mapa ao fundo cortado, a mesa à esquerda, cortada; a janela que não se vê, mas traz a luz). A paleta (a cor) bastante restrita, em gradações de azul e marrom, contribui para o destaque dos volumes. Em silêncio, num canto isolado de uma casa holandesa qualquer, à luz de uma janela, uma mulher grávida lê uma carta. E, na aparente ‘pobreza’ de uma composição despojada, um universo de sugestões se abre para nós.
Observemos então a rendeira [fig.2 e 2b] absolutamente absorvida em seu trabalho minucioso, manipulando cuidadosamente pinos e fios coloridos. Trabalho feminino em âmbito doméstico, indicador de sua virtude. Distante deste mundo, ela somente presta atenção ao seu dever. Este pequeno quadro do Museu do Louvre, de apenas 21 x 24cm, não por nada foi considerado por Renoir a pintura mais bela do mundo: os vários pontos de luz desfocados são um dos melhores exemplos da interpretação da luz conduzida por Vermeer e que tanto agradou os impressionistas.
Absorvido em seu trabalho também está o astrônomo [fig.3]. Já a criada que versa o leite [fig.4 e 4b] parece, ao contrário, deixar fugir para bem longe seu pensamento, parecendo separar-se do ambiente. Então vamos olhar para o geógrafo [fig.5]: o gesto interrompido, o olhar distante… Será que ele tenta se lembrar de alguma coisa, talvez de um dado, de uma informação aprendida num tempo passado, ou será que, em vez disso, algum pensamento perturbador o tenha feito perder a concentração? E o que dizer das cartas? Obviamente são cartas de amor, escritas apressadamente, recebidas com ansiedade, com dúvida, e lidas com saudade e inquietação [fig.6-8].
Parece quase uma contradição pertencer ao mundo belíssimo das formas e da luz, dos relevos e dos volumes, e, ao mesmo tempo, estar ausente. Vermeer sugere, muitas vezes, uma continuidade para além dos limites do quadro. Uma jovem adormeceu em meio ao trabalho [fig.9], e uma porta aberta atrás dela nos diz que alguém pode chegar de repente. Ele ainda faz contínuas alusões a personagens ausentes ou distantes: alguém espia por uma janela, ou são as cartas, que trazem consigo os seus autores.
Resta-nos a impressão de que nenhuma palavra poderia substituir a imagem. Somente uma pessoa que tenha uma grande sensibilidade e delicadeza de alma conseguiria apanhar (e representar) o instante muito rápido, a fração de segundo em que brilham nos olhos, ou fazem parar os gestos os sentimentos mais verdadeiros, desvelados, porque no instante seguinte esses mesmos sentimentos se escondem por alguma razão. Ele pinta esse exato momento: o instante para o qual não existem palavras. Duas de suas pinturas são muito eloqüentes sob esse aspecto: “A lição de música” [fig.10 e 10b], de Londres, e a “Moça com brinco de pérola”, de Haia. Na primeira pintura o silêncio entre os dois personagens é reforçado pela amplidão e vazio do primeiro plano. A sala torna-se ainda maior por estar refletida no espelho, e o vazio também se amplifica. O silêncio revela a tensão. A moça, deslocada à direita, nos sugere desejar aproximar-se do homem, seu professor. Assim, deslocada, não pode tocar o instrumento. Seus ombros sugerem o esmorecer dos braços, que parecem brincar com as teclas porque não conseguem fazer outra coisa. Os olhos baixos nos falam de timidez e hesitação. O homem responde à aproximação oferecendo o seu braço direito. Permanece imóvel, contido, talvez inibido, porém a esperar. As duas figuras se unem somente pelo encosto da cadeira atrás deles.
Essa mistura de contenção e desejo aparece uma outra vez na “Moça com brinco de pérola” [fig.11] – obra que, não à toa, foi chamada de algo como ‘a Monalisa nórdica’. Ela nos olha, ou olha o pintor, no mesmo momento em que deixa escapar o seu segredo. Então quer fugir ela própria, desaparecer na sombra do fundo.
Assim é Vermeer, e poderíamos falar ainda muito mais. Estupendo é esse artista que nos faz ir e vir do prosaico e corriqueiro ao insólito, que nos conduz do concreto ao intangível. Revendo sua obra, passeamos em meio a mais construída realidade, onde repentinamente nos damos conta de que todos aqueles pensamentos, sentimentos e toda a inquietude retratada talvez pertençam também a nós.