De repente me pego sentada em minha cama, recostada na cabeceira, com as pernas esticadas para frente. Tenho nas mãos o livro “Obras completas de Santa Teresa de Ávila”. Impossível não fazer a comparação com minha avó Verônica a quem vi tantas vezes sentada em sua cama, nessa mesma posição, lendo “Horas litúrgicas” ou “Ofício das horas” ou alguma coisa assim. Ela tinha uma ferida muita feia no pé e interrompia várias vezes a leitura para coçar ao redor da ferida envolta em gazes quilométricas. É notável como sempre repetimos os papéis. Também quando venho do supermercado carregando sacolas, sempre me lembro de minha mãe que voltava do mercado toda sorridente num tempo em que ainda era cheia de esperança e alegria, e ela dizia que se não tivesse nada a apresentar a Deus depois de sua morte, apresentaria as sacolas pesadas que levavam sustento à família.
Lembro-me muito bem do amor e carinho que minha avó sentia por mim, por todos nós. A gente sabe quando é amada e acolhida. Nunca vou me esquecer de quando cheguei de surpresa em sua casa aqui em Itajubá. Eu tinha uns dez anos e vim com uma amiga. Viemos de camionete de seu pai, nos segurando atrás na carroceria. Engolíamos o vento forte e ríamos como sempre riem de tudo as crianças. Quando entrei na casa da vovó, do corredor eu já a avistei. Ela estava sentada na cama com seu livro de oração, tal como eu hoje aqui. Quando me viu, veio ao meu encontro tão feliz! Mais tarde, já mocinha, aqui em Itajubá, ela me ajudou com as amostras de folhas no herbário, um trabalho de escola. E fomos de planta em planta naquele quintal florido que nem seu era, mas que ela transformou num jardim maravilhoso! Repito: a gente sabe quando é amada e acolhida. E como isso é importante na vida de uma criança que mais tarde haverá de tirar suas conclusões sobre o amor.
Essas memórias são muito preciosas para mim. Viver é poético. Não há como escrever sem carregar junto a bagagem de afetos que acumulamos pela vida. Posso mudar a história ou o tema do que vou escrever, mas o conteúdo é basicamente o mesmo porque a raiz do que escrevo está plantada na minha infância. Gabriel Garcia Marques disse: “um escritor não faz outra coisa além de escrever o mesmo livro, de diferentes formas, a vida inteira.” É vero. É fato. É como aquele indício que os detetives buscam, torcendo para que o suspeito conte outra história. Mas se o suspeito for inocente ele contará sempre uma única história. Poderá modificar as frases, os termos, mas sua verdade estará sempre pronta. Sempre a mesma verdade.
E não é que justamente agora leio em Santa Teresa algo parecido com o que li em Gabriel Garcia Marques? Obedecendo aos superiores para escrever sobre a oração, ela disse que bem pouco iria dizer do que já dito em outras verdades que a haviam mandado escrever, antes temia que pudessem ser quase todas as mesmas, ao pé da letra. Ela sabia falar do que conhecia.
E ouso agora parodiar o autor de “Cem anos de solidão”: Nunca, em nenhuma circunstância, esqueci que, na verdade da minha alma, não sou nem jamais serei ninguém mais do que uma das dez netas da Vovó Verônica. Ela soube passar a mim, sem chamegos e beijos, a sensação exata do que é ser amada.
*Autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia e Na casa de minha avó. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.