Normalmente à noite usamos perguntar: como foi o seu dia? Bem, na maioria das vezes eu digo que nada de mais, o usual, nada impactante, nada que merecesse uma atenção especial. No entanto, não será preciso que nosso dia contenha uma história de peso, algo como “recebi um prêmio” ou “meu neto nasceu” para ser um dia memorável. Se formos pensar, veremos que muitas histórias acontecem em mil palavras no dia a dia, milhares de pensamentos que nos visitam a todo instante, ainda que não tenhamos saído de casa. Hoje em determinado momento me peguei pensando em um fato da infância quando minha colega teve hepatite e já estando melhor era levada de carro pelo pai ao colégio. Quando o carro parava, eu a observava saindo com cuidado e também observava o carinho do pai para com ela. Como desejei ter hepatite! Mas meu pai nunca teve carro! E eu tive hepatite, só que trinta anos depois e aí era eu que olhava por meu pai com carinho.
Como sempre uma coisa puxa outra, deste fato lembrei-me de meu pai e meus pensamentos se voltaram para ele. Lembrei-me de um fato já acontecido depois de sua morte. Eu estava em Belo Horizonte e subia uma ladeira que vai dar na Savassi. Olhei do outro lado da avenida e me pareceu por um instante que era meu pai descendo, era o jeitinho dele. Parecia tanto que resolvi voltar para olhar melhor, porém com o trânsito e com tantas pessoas que subiam e desciam, eu o perdi. Na verdade eu já o havia perdido, ainda estava de luto e o luto provoca essa angústia da ausência, a sensação de ter visto a pessoa querida. Esta não foi a única vez que “vi meu pai” depois de sua morte. Eu e minha mãe passeávamos de carro, como ela gostava desses passeios, e de repente, ela me disse: olha, é seu pai! E era muito parecido sim, subindo de costas pra nós a rua da igreja. Também “vi minha mãe” depois de sua morte, num vidro espelhado de uma clínica. Depois descobri que a imagem era a minha, eu já tinha passado daquele ponto em que as filhas se quiserem saber como serão no futuro, basta olhar para suas mães.
Mudando de meu pai para um livro que estou lendo, hoje também li um pouco da “Americanah” da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e como gosto desta escritora, de suas expressões tão profundas, de seu jeito de narrar. Adorei duas falas entre tantas outras da narradora ou da autora, uma vez que o narrador nada mais é do que o próprio autor, falas que transcrevo aqui: “E sua alegria se tornava inquieta batendo as asas dentro dela, como quem busca uma chance de sair voando.” Que lindo! Em outra passagem, “Às vezes, quando estavam conversando, ocorria a Ifemelu que tia Uji deliberadamente deixara parte de si para trás, uma parte essencial, num lugar distante e esquecido.” Fiquei pensando em minha alegria que sempre bate asas por aí, mas volta e também me perguntei qual parte essencial de minha vida eu deixei para trás em um algum lugar distante e esquecido. Por isso os bons livros são tão amigos, porque fazem a gente pensar e refletir.
Sim, milhares de reflexões e pensamentos nos visitam a cada instante, ainda que não tenhamos saído de casa e o pensamento é rápido como uma flecha, mas as emoções que dele decorrem são tão intensas como uma viagem supersônica ao redor do universo. Às vezes nos atingem com violência tal como se vivêssemos de tudo em um momento só.
Não, não preciso de uma notícia bombástica maravilhosa para dizer que meu dia foi glorioso. Carregamos um mundo de histórias dentro da gente. Então, respondendo à pergunta de meu marido, eu posso dizer: Meu dia foi fantástico, não poderia ter sido mais rico! As riquezas são tão relativas!
Por Misa Ferreira
Autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia e Na casa de minha avó. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.