Já nos meus cinco anos derrotei o monstro que morava debaixo da minha cama. Era de madrugara e o som de seus murmúrios não estavam me deixando dormir. Era assim todas as noites, ele tentava me assustar puxando minha coberta, arranhando a madeira da minha cama e produzindo aqueles sons infernais e melancólicos. Acho que ele era meio incompetente. Os monstros das outras crianças, pelo que eu ouvia delas, sempre me pareciam mais assustadores … Mais legais mesmo. O meu não passava de um chato que atrapalhava meu sono. Naquela noite eu estava farto de vez por dois motivos: O primeiro era que no dia seguinte tinha prova e mamãe me disse que eu tinha que dormir bem para não esquecer de tudo, segundo: Naquela noite ele parecia estar mais inspirado e prolongou seu choro mais do que usualmente. Então, irritado e querendo dormir, retirei as cobertas e o encarei. Daquela noite em diante nunca mais precisei me incomodar com ele, foi embora de vez. Ah! E se você quiser saber, no dia seguinte tirei um baita de um 10!
Eu me considero de verdade muito corajoso, e desafio sempre meus amigos a tentar provar o contrário. Mas, devo admitir, isso não é completamente verdade. Você tem que me prometer segredo, nunca admiti isso a ninguém, nem para maus pais, nem para o padre e nem para qualquer pessoa. TENHO MEDO DE CORTAR CABELO!
Pronto, estou bem mais aliviado! Me desculpe por gritar assim … É que isso é um pouco difícil para mim, de verdade… Antes de você começar a me achar não tão corajoso assim, me deixe contar como é quando tenho que cortar o cabelo, talvez eu consiga mudar sua opinião.
Tia Conceição sempre cortou meu cabelo, desde que me lembro por gente. Ela mora numa casa com cheiro de gente velha, e como ela e o tio Afrânio já eram velhinhos suponho que vinha deles. Não eram meus tios de verdade, mas era como se fossem. Quando se mora num bairro pequeno, ou vizinhos são seus amigos ou inimigos. Pelo menos é o que eu penso. E tia Conceição e Tio Afrânio eram nossos melhores amigos. Quando o dia do corte chegava eu fazia birra em casa, mas não tinha jeito, minha mãe me levava de qualquer maneira às vezes me arrastando, às vezes me empurrando, eu não tinha escolha. Os cortes eram sempre na varanda da tia Conceição. Eu me sentava numa de suas cadeiras de plástico, virado para um pequeno depósito de ferramentas. Ao lado ficava a casa do cachorro deles: Um vira-lata ruivo que com certeza não gostava de mim. Assim que me via rosnava baixinho e só parava quando era repreendido por um dos meus tios. Mesmo assim me olhava desconfiado com uma orelha abaixada e uma de pé, atento, como se esperasse que a qualquer momento eu esfaqueasse seus amados donos. Ele sempre ficava preso, e se eu realmente tentasse matar aqueles velhinhos simpáticos, ele nada poderia fazer para me impedir.
Eu deixava de me importar com o cachorro quando tia Conceição trazia sua maleta cor de rosa enfeitada com morangos e passarinhos azuis. Para você pode parecer simpática, mas para mim nada mais era do que o recipiente dos dois objetos mais malignos do mundo. E eu juro que naquele momento os morangos se transformavam em corações arrancados de crianças e os passarinhos em corvos assassinos. Tia Conceição começava sempre estendendo sobre mim uma toalha banca, que na verdade não era muito branca. Tinha duas manchas amarelas que lembravam um golfinho e um balão. Depois de me cobrir bem, ela molhava as mãos em uma pia ao lado, massageava meus cabelos os deixando úmidos e pegava o primeiro objeto. A tesoura!
O que me aterrorizava não era a tesoura em si, eu não tinha medo de tesouras. Eu tinha medo de uma tesoura nas mãos tremulas da minha tia com o objetivo de fazer cortes bem próximo da minha cabeça. A profusão cada vez maior sujando a toalha me fazia ficar cada vez mais tenso, pois sabia que quanto mais cabelo, mais aquelas lâminas ficavam perto de me tocar. Seus movimentos não eram os mais precisos e muitas vezes ela me cutucava. Eu fechava os olhos sentindo a tesoura dançar cada vez mais perto, cada vez mais próximo de perfurar meu crânio e fazer jorrar um esguicho de sangue para todos os lados. Às vezes eu abria os olhos e descobria o maldito cachorro me olhando, juro que via uma certa satisfação em seu olhar.
Depois da tesoura vinha uma maquininha elétrica. Seus dentes eram bem fininhos e sua função era finalizar o corte. Assim que ela o ligava meu coração dava um salto. Aquilo zumbia como uma abelha zangada voando ao meu redor. Eu não tinha medo de abelhas por que eram pequenas e tímidas, mas tinha medo daquela abelha, pois era grande e muito atrevida. Eu apertava mais meus olhos quando aqueles dentinhos encostavam em minha pele vibrando perigosamente próximo do meu pescoço ou do meu maxilar, em movimentos lentos e nada precisos. A pior parte daquela etapa da tortura era quando a abelha roçava atrás dos meus ouvidos. O barulho e a vibração aumentavam ainda mais. Naqueles instantes cada parte do meu corpo gritava eufórico para que eu saísse correndo imediatamente. Eu, porém, não conseguia. Minhas mãos grudavam firmes numa das pernas da cadeira me impossibilitando de fugir. Ah .. Como eu as odiava por isso. Finalizada essa parte a tesoura voltava para aparar os fios que se destacavam do restante bem aparado. Era, com certeza a pior parte. Não sei se por meticulosidade, ou por lerdeza mesmo, tia Conceição se demorava muito naquela parte. E quando eu pensava que tinha acabado, outro maldito cabelo aparecia para ser removido ou algum trecho irregular brotava do nada, para trazer de volta a abelha gigante.
E aí tudo acabava, depois de horas de sofrimento e perigo real de ser escalpelado ou decapitado por aquela velhinha sorridente. Eu a assistia ainda um pouco assustado varrendo meus fios castanhos para um cantinho com sua vassoura velha. Depois eu a agradecia e ia embora, correndo, sentindo-me um pouco estranho com bem menos cabelo.
Sempre fui o mais corajoso das crianças e gostaria de continuar sendo. Então não conte para ninguém sobre isso e eu prometo passar a noite na sua casa para ajudar você a se livrar do seu monstro. Tenho certeza de que ele vai ser menos assustador para mim, do que o dia em que vou cortar cabelo na casa dos meus tios.
Tchau!