Já vimos, noutros artigos, como é complexa a definição do que seja uma obra de arte. No entanto, em qualquer ocasião – e não necessariamente dentro de uma sala de aula -, quando se pede a alguém que cite uma obra de arte que considere “indiscutível” em termos qualitativos, lá vem a resposta quase que invariável, lá vem ela, a Monalisa [fig.1] de Leonardo da Vinci (1452-1519). E não só: muitas vezes, basta um simples fragmento da obra para que o todo seja identificado imediatamente. Os olhos, as mãos [fig.2] ou o famoso sorriso são reconhecidos como partes dessa que é a grande obra-prima da arte ocidental. Esse reconhecimento da pintura leonardiana como “a grande obra” é testemunhado pelo uso da imagem nas incontáveis retomadas que já foram feitas dentro das artes, como as paródias iconoclastas de Marcel Duchamp [fig.3] e de Fernando Botero [fig.4], para citar algumas das mais conhecidas. O uso da imagem na propaganda confirma, mais ainda, a popularidade da figura e seu vínculo com uma qualidade artística incontestável. Veja-se, por exemplo, aquela propaganda em Carlos Moreno, fantasiado de Monalisa, vem propor o uso de um produto capaz de transformar “sua roupa em uma perfeita obra-prima” [fig.5].
Porém, quando as mesmas pessoas que apontam a Monalisa como obra indiscutível são interrogadas sobre o porquê dessa importância, suas respostas – quando formuladas – já não são tão diretas, nem convincentes. Estamos tão habituados a ver essa imagem, ela está tão banalizada, que não conseguimos mais nos perguntar sobre ela, pensar sobre ela. O fato é que, simplesmente, não se sabe mais o porquê de sua importância. Fala-se, sobretudo, no mistério da identidade da retratada, no sorriso enigmático, no olhar que segue o espectador, enfim… Justifica-se a importância dessa obra por motivos que se vinculam, quase sempre, a questões de interpretação, questões subjetivas e muitíssimas vezes estapafúrdias. Como já se disse noutro texto, as questões subjetivas são bem-vindas para a apreciação de uma obra de arte, e muitas delas podem até ser verdadeiramente enriquecedoras. No caso da Monalisa, entretanto, parece grassar o absurdo. Deixemo-las, portanto, de lado e, apenas com o que sabemos comprovadamente, consideremos a importância histórica dessa obra.
É certo que é um marco da história da arte. E as obras que são marcos são sempre inovadoras, introdutoras de novidades que vão se perpetuar, que vão ser absorvidas e tomadas como exemplo por outros artistas até que a inovação vire hábito e surjam outras novidades e revoluções.
A Monalisa é retrato feminino em que a modelo, sentada numa galeria voltada para uma ampla paisagem, olha diretamente para o observador. É um quadro de dimensões modestas (102,4 x 76,8cm) pintado a óleo sobre madeira. Madeira de álamo. Há uns anos, assisiti a um filme que mostrava Leonardo viajando para a França e levando na bagagem esta sua mais famosa obra. No entanto, ele a levava enrolada, como se fosse uma tela solta do chassi. Impossível, portanto, enrolar um painel de madeira. Além disso, observe-se como há muitos craquelados na superfície pictórica [fig. 5], que ocorrem com mais facilidade quando a madeira de suporte se expande ou contrai de acordo com as condições de umidade e temperatura.
Como se disse, Leonardo, que faleceu na França, tendo ido para lá a convite do rei Francisco I, carregou a Monalisa consigo. Em 1517, antes mesmo da morte do pintor, o quadro foi visto nas coleções reais francesas, onde permanece até que seja doado por Napoleão Bonaparte ao recém-nascido Museu do Louvre em 1805. E ali está exposto, como uma jóia caríssima, ou talvez como uma relíquia (o ar de sacralidade é ponto passivo), protegido por um espesso vidro à prova de tudo e cujos reflexos prejudicam a visão total da obra, por uma corrente de isolamento que não nos deixa chegar perto. Depois, há que se vencer os pequenos batalhões de turistas que se acumulam em frente à obra e fazem questão de levar para casa uma fotografia que os mostre diante da ‘celebridade’. Resultado: é frustrante; a Monalisa se vê melhor em reproduções.
A pintura permanece intocada em termos de restauração. Encontra-se em seu estado original. Uma pesada camada de verniz escureceu (mas também protegeu o quadro durante esses cinco séculos) e homogeneizou os tons da obra, impedindo-nos de ver bem a parte inferior da composição. Uma fotografia antiga é de auxílio nessa hora [fig.7]. Ela mostra que a figura se apóia no braço torneado de uma cadeira. A fotografia também torna mais compreensível o espaço arquitetônico do primeiro plano, onde a personagem se encontra: uma galeria aberta para a paisagem. Duas bases de coluna são vistas de cada lado, sugerindo talvez a possibilidade de a pintura ter sido cortada nas laterais. Um desenho do pintor Rafael de Urbino realizado a partir do quadro de Leonardo indica, de fato, a presença dos fustes das colunas [fig.8].
Uma das poucas questões indiscutíveis em relação à Monalisa é a autoria de Leonardo da Vinci. Leonardo, como era comum no período, não tinha o hábito de assinar suas obras, mas no caso desta existe uma documentação ampla e consistente que a remete às mãos do mestre.
Um segunda questão é relativa à datação. Leonardo da Vinci pintou a Monalisa em Florença provavelmente entre os anos de 1503 e 1505. Infelizmente, sobre a data de realização da pintura, não há qualquer referência escrita de pagamentos, nenhuma menção em qualquer documento contemporâneo, nenhum esboço preparatório. Na História da arte, na ausência de documentos diretos que comprovem dados como datação e autoria de obras (como assinaturas e inscrições na própria obra, contratos, recibos de pagamento, etc.), é possível lançar mão de referências indiretas, frequentemente ‘documentos visuais’. Desta forma, a data-limite em torno de 1505 vem sugerida pelo já mencionado desenho de Rafael [fig.8], realizado durante sua estadia florentina e que serviu de base para a composição de seu Retrato de Maddalena Doni [figs.8 e 9], cuja data se coloca entre 1505-1506. Assim, para que Rafael tivesse usado o modelo da composição mostrado pela Monalisa, evidentemente o quadro de Leonardo tem de ser anterior. O contrário – que Leonardo tivesse se inspirado em Rafael – é pouquíssimo provável, uma vez que Rafael era um artista pouco mais que iniciante e sem prestígio nessa época, enquanto Leonardo, bem mais velho, já tinha fama estabelecida.
A questão talvez mais espinhosa é a da identidade da retratada. Hipóteses das mais estapafúrdias já foram levantadas, sempre polêmicas, geradoras de rebuliço e animados debates. Os ‘mistérios’ que envolvem a Monalisa ajudaram, sim, a construir sua fama mitológica. E toda a abundante literatura que se escreveu (e se continua a escrever) a respeito gerou material “documental”, em boa parte inútil para a história da arte.
O valor da Monalisa não passa pela identidade da retratada.
De todo modo, o que se sabe hoje sobre a figura feminina que posou para Leonardo há cinco séculos, é praticamente o mesmo que se sabia no século XVI: que se trata, muito provavelmente, da florentina Lisa Gherardini (nascida em 1479), esposa de um certo senhor de nome Francesco del Giocondo. Isso é o que nos conta Vasari em 1550. O nome “Monalisa” vem da corruptela da palavra italiana “madonna”, isto é, “mona”, que quer dizer “senhora”, mais o primeiro nome da dama – Mona + Lisa. As duas formas são, contudo, aceitas, sendo “Monalisa” mais comum no mundo anglo-saxão.
O outro nome pelo qual a figura é conhecida, Gioconda, vem do sobrenome de seu esposo, “del Giocondo”. Essa alcunha começou a ser utilizada depois que um italiano, Cassiano del Pozzo, viu o quadro no castelo de Fontainebleau e escreveu sobre ele num texto importante, datado de 1625. Nesse texto, o autor fala de “um retrato de tamanho natural, em madeira, com moldura entalhada, de meia figura, que é retrato de uma tal de Gioconda. É a mais completa obra desse autor, porque, além da palavra, não lhe falta nada”.
Mas não é só, Cassiano del Pozzo ainda pensa a respeito do celebérrimo sorriso da Monalisa, e o compara ao sorriso enigmático das estátuas femininas arcaicas gregas, chamadas korai [fig.10]. Del Pozzo, contudo, não tinha sido o primeiro. O sorriso da moça já havia sido referido noutro escrito, o do também italiano Agnolo Firenzuola, que o mencionara em seu tratado sobre a Perfetta bellezza (1541).
Realmente, há algo de misterioso no sorriso da Monalisa. Del Pozzo parece ter razão ao compará-lo ao sorriso arcaico grego das korai, que, contudo, é um sorriso mais conceitual que observado. Os gregos daquele período estavam lentamente conquistando o aspecto natural em sua arte e aprendendo a representar tanto a anatomia quanto as emoções humanas. Diríamos que, com o sorriso das korai, eles estavam ensaiando a representação das emoções, de modo que o resultado é mais convencional que naturalista.
(Sem querer engrossar o coro dos pitacos infundados, mas talvez já o fazendo, diria que o aspecto misterioso do sorriso vem de certa discordância entre o próprio sorriso e o olhar da figura. O sombreado intenso no canto dos olhos sugerem que ela ri mais intensamente com os olhos do que com a boca)
Leonardo é um homem de seu século, e dos mais prolíficos – não é novidade. O século XV, em que ele nasceu, foi marcado por intensas pesquisas científicas em vários campos do saber que, de fato, levaram a um grande salto cultural. Na área das artes plásticas isso é particularmente notório. O século se inicia com o arquiteto Filippo Brunelleschi (1377-1446) cobrindo a catedral de Florença com sua imensa cúpula, num trabalho que significou resultado do esforço intelectual de um único indivíduo e que exigiu, inclusive, o desenvolvimento de novas técnicas, novos instrumentos e novos meios de projetar. O desenho de perspectiva geométrica começa a nascer aí.
Não é de subestimar, absolutamente, a contribuição do desenho perspéctico para o impulso cultural que teve lugar naqueles anos. O século XV é o século das grandes navegações, o século que ‘descobriu’ a América, que exigiu bastante da engenharia, da geografia, da cartografia. A perspectiva geométrica foi um importante instrumento, capaz de traduzir para o papel perfeitamente, nas relações de distância, o espaço natural visto em profundidade. Essa foi a primeira e a mais marcante contribuição das artes à ciência quatrocentista, o que, inclusive, alterou o status social do artista. Este, de simples artesão, trabalhador manual – como um sapateiro ou um joalheiro -, pôde começar a ser visto como um representante das artes liberais: aquelas que se desenvolvem com o intelecto. O artista ganhou valor.
Portanto, quando Leonardo nasceu, o caminho das contribuições científicas para a arte já estava sendo trilhado há certo tempo. Sua imensa curiosidade intelectual o levou, contudo, a desenvolvê-lo ainda mais. O grande interesse de Leonardo estava na natureza. Ele queria apreender suas formas, entender sua composição e o funcionamento de suas engrenagens. É o espírito científico que marca este homem, que o leva a observar e desenhar plantas, a estudar anatomia, a projetar máquinas.
O estudo da anatomia foi outro ponto marcante e decisivo para o avanço das artes no final do século XV. E Leonardo contribuiu diretamente para isso. Estudar a anatomia, entender a ordenação, a forma, a função de músculos, de ossos e vasos foi certamente fundamental para que os corpos desenhados, pintados ou esculpidos recuperassem o naturalismo que tinham perdido na Idade Média, ou seja, para que um corpo desenhado ou pintado fosse convincente como representação de um corpo real, que um corpo feito por artista se parecesse com um corpo natural. Os inúmeros desenhos de anatomia de Leonardo são a prova de um intenso estudo dedicado a esse domínio.
Assim, até aqui, temos já duas características importantes desenvolvidas pela arte do século XV e exibidas na Monalisa: o espaço convincente, desenhado a partir da perspectiva geométrica, abrindo-se em profundidade – vejam-se os caminhos que serpenteiam até o fundo, até perder-se no horizonte nublado – e a anatomia igualmente convincente da figura, de rosto e mãos delicadas, femininas, de pele suave, cabelos como uma massa escura: tudo conforme o olho humano pode perceber. Mesmo o espaço natural temas distâncias mostradas não apenas pela perspectiva geométrica, mas também de acordo com o que se chamou de “perspectiva aérea”: quanto mais distante no espaço um objeto, mais nublado ele fica, e muda de cor. É assim que as montanhas mais próximas tendem a ser mais verdes e as mais distantes, azuis, lilases, roxas…
Para tornar ainda mais nítida a dimensão desses avanços, comparemos uma imagem do século XIII com a Monalisa [fig.11]: o espaço é reduzido a um plano dourado sem qualquer indicação de profundidade. Dobras e pregas de roupas e corpos são interpretados de um modo esquemático. O artista pinta o que sabe existir, não o que ele vê. O artista medieval não possui mais o conhecimento técnico para a interpretação naturalista e, sobretudo, não está interessado nela.
Além da questão do espaço e da anatomia resolvidas de modo excelente pela Monalisa, essa obra representa ainda a solução que Leonardo e muitos artistas florentinos seus contemporâneos esperavam: a integração natural da figura no espaço. E esse é um problema de interpretação da luz. Para efeitos comparativos, vejamos o belo retrato de Antonio Pisanello (c1.395-1455/6), datado de 1436-1438 [fig.12]: um retrato tradicional, em que a figura é fixada de perfil. Tudo muito linear. O perfil recorta a superfície do quadro, separando a figura clara do fundo escuro e florido muito bruscamente. Temos a impressão de que se trata de um desenho pintado, onde as linhas de contorno são muito evidentes e não permitem que a luz seja interpretada de modo natural, embora crie perfeitamente os volumes. O aspecto das flores e da vegetação do fundo também é linear, desenhado sem fusão, de modo que o fundo ganha um aspecto decorativo, como o de um painel ou cortina estampada.
Sim, a Monalisa vai realizar a fusão da figura no espaço por meio da compreensão da interpretação pictórica da luz e do funcionamento do olho humano. Leonardo, em suas observações, vai entender que o olho humano nunca percebe todos os detalhes daquilo que está dentro do seu campo de visão ao mesmo tempo. Ele vai entender que o que torna uma figura pintada mais ‘viva’, ‘natural’, não é tanto a capacidade de interpretação do detalhe, mas essa adequação de formas, texturas e cores ao funcionamento do olho. Também isso se clarifica quando comparamos a Monalisa a um retrato flamengo do mesmo século (c.1480), de Hans Memling (1430/40-1494) [fig. 13]: a imagem tem um imenso poder plástico; parece esculpida. A figura é de grande vitalidade, e chega a nos impressionar pelos detalhes ‘vivos’: vejam-se a incrível perfeição das mãos e das jóias! A figura é uma ‘aparição’ em sua concretude e brilho, surgindo do escuro. Mas há algo que não permite – ainda – a realização do naturalismo. Está nos olhos, no nariz no véu: desenhados, cortantes, ásperos.
Veja-se agora, em contrapartida, como Leonardo resolve o problema da figura contra o fundo escuro, já em c.1490, com sua Belle Ferronière [fig.14]: a figura é toda suavidade, feita de gradações de sombra. Não há contornos cortantes, cabelos e roupas vão-se misturando ao fundo negro, os olhos, boca e nariz são trabalhados com sombreados, abolindo o efeito da linha cortante. Leonardo, que dominou magistralmente a técnica da pintura a óleo sobre madeira, soube usá-la em proveito de seus experimentos. A ele se deve o desenvolvimento da técnica presente na Belle Ferronière: o “sfumato” (ou “esfumado”), igualmente bastante exibida pela Monalisa, sobretudo nos cantos dos olhos e ao redor da boca. O sfumato é, portanto, a diluição suave dos contornos, que não separam mais as superfícies asperamente, de modo cortante, como na obra de Pisanello. O resultado é mais ou menos o mesmo do que conseguimos quando passamos o dedo sobre uma linha traçada a lápis macio. O contorno perde o foco, a figura mergulha naturalmente em sombra ou naturalmente se revela em luz. Para reafirmar esses contrastes, podemos ver ainda uma última imagem e contrapô-la à Monalisa. Outra obra de Hans Memling [fig.16], mais próxima da Monalisa por estar a figura disposta contra um fundo de paisagem. Domina, novamente, a linearidade que transforma a mulher numa escultura, talvez numa figura de cera que não se casa bem com o ambiente.
A importância histórica da Monalisa – muitíssimo difícil de perceber hoje – está no fato de ela reunir, como num alto vértice da história da arte, o resultado de todos os esforços de pesquisa científica empreendidos pelo século anterior. Pela primeira vez, desde o que se narra ter sucedido com a pintura grega, uma obra de pintura foi considerada ‘viva’ e teve imensa repercussão. Porque espaço, anatomia e luz foram reunidos harmonicamente e interpretados tal e qual poderia fazer o olho humano. Um longuíssimo caminho tinha acabado de ser percorrido em direção à conquista da natureza, e a História da arte estava pronta para começar outro capítulo.
Uma deliciosa crônica intitulada “Do que ri a Monalisa?”, Affonso Romano de Sant’Anna nos fala de sua visita à obra-prima no Louvre. Ele constatou, entre frustrado e divertido, que as pessoas vão àquela sala em que a obra se encontra, passam por ela, tiram suas fotos e se vão dali rapidamente. Nem sequer enxergam o que foram ver e muito menos olham para o restante da sala, que é absolutamente repleta de outras obras-primas renascentistas de peso (do próprio Leonardo, de Rafael, de Ticiano, etc.). Segundo Sant’Anna, é disso que ri a Monalisa. Mas creio que ela tem ainda mais motivos para isso.
[Minhas referências para este texto: Anna Ottino della Chiesa. L’opera pittorica di Leonardo. Milão: Rizzoli, 1978, p. 103-105; Germain Bazin. La peinture au Louvre. Paris: Aimery-Somogy, 1970; Affonso Romano de Sant’Anna. « Do que ri a Monalisa ? », em Que presente te dar. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002, p. 74-77.]