Então, éramos colegas de trabalho e vivemos o tempo dos excessos, do início do cartão de crédito, que para nós significou um milagroso pedacinho de plástico duro. Tudo era motivo para usar o cartão. Era uma bolsa que deveria combinar com o sapato, um casaco de lã, outro de meia estação, blusinhas de seda de várias cores e milhares de outros itens que fazem brilhar os olhos das mulheres, pois só elas são capazes de entender. Éramos produtos de nossa época, da cultura do consumismo. Muito mais tarde aprendemos que podíamos e devíamos viver com pouco, com muito menos do que temos, mas já estávamos dependentes do consumo, e era uma luta! E aí ela sempre me falava que estava sendo curada da doença de gastar sem necessidade. Eu duvidava um pouco porque logo ela se esquecia da meta de viver simplesmente e vinha logo contando de uma compra de dois pares de botas em promoção que eram imperdíveis, um tecido de seda pura em uma loja antiga que não se achava mais, duas televisões pelo preço de uma e até medicamentos pela internet, isso buscando um medicamento e outro para atingir determinado valor que dispensasse o frete. E por aí vai ou ia muita coisa.
Ela também dizia que seu sonho era fazer uma longa viagem com mala pequena e sem máquina de tirar fotos por que não raro a preocupação em registrar tudo acabava por tirar grande parte do prazer de saborear a beleza dos lugares, de encher os olhos e a alma com imagens que ficariam gravadas para sempre em nossa mente. Enfim, as fotos constituíam mais uma obrigação de registrar tudo para não perder nada, e uma viagem não poderia comportar ansiedades desse tipo. Seu ideal de passeio era poder se sentar em um banco de pedra para assistir ao por do sol num vale deslumbrante e poder resistir ao clique da máquina. Mas confesso que na volta do tal vale com por do sol, parávamos numa lojinha ou outra para ver bobagens.
Talvez fôssemos como Jacinto, o personagem de Eça de Queiroz de “As cidades e as serras” ou o conto “Civilização” (condensado do livro). Jacinto, moço rico que morava quase num palácio, cercou-se de todos os confortos da modernidade. Servido por vários empregados e exímios cozinheiros, nada lhe apetecia, vivia pálido e triste. Acostumou-se de tal forma com tantas minúcias modernas e engenhosos apetrechos que julgava não poder viver mais sem eles. Só de escovas para o cabelo ele tinha várias, como uma escova chata e redonda para o alto da cabeça, outra estreita para ondear o cabelo sobre a orelha, outra côncava para a parte de trás da cabeça, escova mais leve para as sobrancelhas e outras de cerdas longas para o bigode. Pois não é que o moço vai parar no alto duma serra literalmente com a roupa do corpo? E era justamente daquilo que ele mais precisava. Depois de alguns meses nunca se viu Jacinto tão robusto e feliz! Adeus tristeza, adeus escovas, adeus medicamentos! O que faltava para ele era passar a falta de tanta bobagem que não fazia falta. Sempre comentávamos sobre esta obra memorável!
Minha amiga partiu e sinto tanto sua falta. Pouco tempo antes de ir segredou-nos que sua sobrinha ao ver seu armário de roupas aberto ficou chocada com o espaço vazio dentro dele, antes abarrotado. Afinal ela conseguira se desfazer de tantas camisas de seda, de tantos vestidos e lenços, e cremes. Parece até que havia se preparado para a grande viagem. Estava feliz! Não sabia que partiria para a eternidade, para o grande silêncio (como diz meu amigo escritor Marcio Leite), em que não cabem tantos ruídos, nem tanta matéria, apenas o ser isento de excessos. Ela partiu desta vida levando apenas o bem que desejou e fez, coisas que só cabem no coração.
Que a gente possa também aprender a descartar excessos. Não nos faria nenhum mal a moderação ao comprar coisas desnecessárias, livrar-nos de excessos ao comer, ao falar, ao vestir, excesso de vaidade de e muitos outros que só causam danos. Excessos só de amor e compreensão com este mundo maluco! Também partiremos quando Deus nos chamar porque a morte é certa, e tomara que não nos encontre abarrotados de tantos excessos. Vamos nos desapegando … Quanto a ela, às vezes penso que está em algum deslumbrante vale do paraíso, assistindo ao por do sol mais lindo que já se teve notícia, sem pressa alguma porque lá as coisas não se passam como aqui.