Ultimamente tenho me prestado a homenagear meus caros que já partiram. Aí dei com esta foto tão antiga de meu tio, este monge que aparece com sua mãe, minha avó, ao lado. É uma foto muito bonita, de encher os olhos! Desde criança sou apaixonada por esta foto!
Eu e meus irmãos o chamávamos por “Tio Quita”, já meus primos o chamavam por “Tio Padre” e outros ainda “Padrinho Quita”.
Minha mãe contava que ele se decidiu pela vida de monge já mais tarde, depois dos trinta anos. Viveu, trabalhou em banco, sonhou, namorou, noivou, mas não casou. Brincou carnaval, era um homem apaixonado pela vida. Foi embora para o Mosteiro Cisterciense em Itaporanga onde dedicou-se à vida monástica.
Tio Quita era uma pessoa especial, tipo inesquecível. Vinha passar “férias” aqui em Itajubá, ficava em nossa casa. Quando chegava de noite, lá estava ele recostado na cama lendo revistinhas de faroeste, o que restou de sua vida mundana. Afinal, todo mundo tem que curtir alguma coisa mundana, para depois sonhar com a santidade. E eu, uma vez que via minha mãe saindo para a missa, perguntava a ele: Tio Quita, o senhor não vai à missa? E ele, rindo muito, respondia: Nãaao, estou de férias!
Tio Quita era um grande poeta de extrema sensibilidade! Fez poemas lindos! Homenageou os irmãos e os sobrinhos. Mas eis que eu, mocinha ainda, descobri que para mim ele não tinha feito nenhum poema! Reclamei com minha mãe e ela, na primeira oportunidade, deu com a língua nos dentes. Um tempo depois ele me enviou um poema dedicado À Misa. O título: A Queixa da Rosa. Na época não entendi nada, só muitos anos mais tarde fui perceber a profundidade da metáfora, ele me comparando a uma rosa. Quando me dei conta de que a rosa era eu, senti a alma enternecida, nunca havia lido nada mais bonito na minha vida. Só de contar isso, ameaço chorar. E é um poema lindíssimo! De uma sensibilidade ímpar. Depois de uma vida inteira, agora que também sou poetisa, eu fiz a resposta do poema: O Agradecimento da Rosa. Meu tio já havia partido. Espero que tenha lido lá do Céu!
Ele era um homem de bondades. Guardo lembranças só de cabeça e coração. Eu era menina em Pedralva quando certa vez ele foi lá nos visitar. E eu me lembro que minha mãe contou para ele de uma viúva em Pedralva que estava sem dinheiro, passando dificuldades, pois o marido havia morrido de repente sem cuidar de aposentadorias, qualquer coisa assim. O Tio Quita pegou os dados, documentos e batalhou até que mais tarde conseguiu que fosse liberada a pensão para a mulher e filhos!
Mesmo sendo monge do Mosteiro, ele foi designado para ser pároco na cidade vizinha de Riversul. Lá ficou por bons anos. Minha mãe e minha tia foram lá visitá-lo e qual não foi a surpresa delas ao constatar que na simples casa paroquial não havia geladeira! E mais surpresas ficaram ao saber que ele havia recusado, não achava certo, era “muito conforto!”
Lá em Riversul ele batalhou pelos pobres. Existe um baixo chamado “Bairro do Padre”: são casas simples para pessoas que não tinham teto. Com festas religiosas, o dinheiro ia todo para o empreendimento.
Não nego que meu tio padre tinha um temperamento bravo, como todos os antigos Ferreiras, eu própria sou bravinha, só que minha braveza foi amortecida pela doçura dos Rezende de Pedralva. Mas gente, Deus não liga para o temperamento, se bem que não custa pedir a Jesus que nosso coração seja semelhante ao d’Ele! Veja só, São Francisco de Sales, dizem que era bravo e sem paciência, e que santo! Que santo! O autor do “Tratado do amor de Deus” era bravo!
Bom, homenagem feita, fico eu aqui a me lembrar de seu riso largo, de seu ar reflexivo quando falava sobre as “misérias humanas”, do seu passatempo mundano ao ler histórias em quadrinhos de cowboy. Pelos idos de 96, ele ficou aqui um bom tempo para tratar de um câncer. Era grave, ele foi piorando dia a dia. Eu, naquela época recém saída do BB, fiquei à sua disposição. O médico aconselhou que caminhasse todos os dias, mesmo de bengala. Íamos à Fábrica de Armas e caminhávamos numa pracinha com pouquíssimo trânsito de pessoas e carros. E lá conversávamos sobre a vida, sobre as alegrias, sofrimentos, sonhos e decepções, enfim, filosofávamos até cansar. Certo dia, vimos uns homens bem simples voltando de algum trabalho e eu senti pena, ao que ele me disse: não se engane, essas pessoas simples são as mais felizes!
Misa Ferreira é autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia e Na casa de minha avó. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas.Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva