Só males são reais, só dor existe…
(Antero de Quental)
Nesse início de ano, nós acompanhamos estarrecidos, mais uma tragédia somada às inúmeras que já atingiram o sofrido povo haitiano. Não bastassem as revoluções, a miséria e o sofrimento de todo o dia, sobreveio o pior. Parece que o terremoto que destruiu Porto Príncipe e outras cidades, ceifando milhares de vidas e deixando um número incontável de feridos, fez ruir também as fronteiras do mundo que, aparentemente, ignorava a dimensão da agonia desse povo torturado por tantos flagelos.
Preferiríamos não ver a feiúra da fome, da pobreza e das doenças. Gostaríamos de fugir da angústia que nos oprime o peito negando que há povos irmãos que sofrem, que vivem tão miseravelmente, muitas vezes sem o básico para sobreviver, entretanto é justamente essa dolorosa e necessária angústia que nos liberta da cegueira para enxergar que o sofrimento mora bem ao lado da extravagante abundância de povos bem alimentados e habituados aos mais modernos e disparatados confortos que podem existir. Sabíamos que o Haiti é um país pobre, que sua capital é Porto Príncipe, sabíamos da sua produção de açúcar, das suas revoluções e de seus governos fracassados que nada construíram para seus filhos. Também sabíamos de suas crianças esquálidas, das altas taxas de mortalidade infantil, das suas precárias condições de vida, mas não víamos, não convivíamos com esse povo, afinal, o que os olhos não veem, o coração não sente. Onde estávamos nós, por quais serenas paragens descansávamos e sobre quais doces paisagens repousavam nosso olhar para não ver o sofrimento do povo haitiano? Onde estávamos que não vimos seus corpos esmagados pela fome torturante e pelas doenças e agora somos obrigados a vê-los esmagados sob o peso das vigas de concreto?
A indignidade em que vivem os negros haitianos não difere muito daquela do período da escravidão quando traziam correntes nos pés e na alma, trabalhando para construir a riqueza dos brancos. Desde então, pouca coisa mudou, pois libertos, mas prisioneiros da miséria, da doença e da fome, o povo haitiano vaga sem esperança, como se tivesse que carregar para sempre o estigma da escravidão. Pouco lhe valeu ter sido a primeira nação independente, contribuindo para o ideal abolicionista na Europa e nos Estados Unidos, a libertação lhe custou muito caro e paradoxalmente, a independência pode ter sido a própria causa de sua falência porque abandonado a sua própria sorte, os haitianos viram sua história ser escrita com sangue, marcada por golpes de estado e violências, à mercê de governantes tiranos e corruptos.
Pensávamos que alguém deveria fazer alguma coisa, mas nós? Como? Pois houve quem fizesse e que morresse pela causa das crianças pobres, quem pregava o amor não apenas com as palavras dos evangelhos, mas com atos concretos como Zilda Arns, como os militares brasileiros e tantos outros anônimos. Foi preciso uma tragédia tão dolorosa para que conhecêssemos um pouco mais da difícil história do povo do Haiti, para que lêssemos seus nomes nas revistas, para que olhássemos para seus rostos e seus olhos inundados de dor e desprovidos de qualquer esperança na vida. Nesse momento de tanta tristeza e desesperança, podemos, ou refletir sobre o desespero dos oprimidos, ou concluir, como Antero de Quental que, “só dor existe”, ou ainda e apenas as duas coisas, o que dá no mesmo.