Há que se considerar a grande maioria de crianças que são felizes, mas não sabem, só vão saber quando forem adultos. Aí vão dizer: eu era feliz e não sabia. Pois eu, autora deste texto, sou uma delas. Eu era uma criança feliz. Como é que você sabe? Você poderá me perguntar, e eu respondo: pelas lembranças e pelas fotos. Minha mãe tinha o adorável e incorrigível hábito de nos fotografar numa época em que até as crianças de famílias mais abastadas só eram fotografadas por profissionais no tradicional retrato no Grupo Escolar, na frente do Mapa Mundi, e na Primeira Comunhão. Eu e meus irmãos temos inúmeras fotos de quando éramos crianças. Atrás da maquininha mágica de tirar fotos sempre estava minha fotógrafa preferida: minha mãe que quase nunca aparecia nas fotos porque se encarregava da tarefa de registrar nossa vida feliz de criança.
Tenho certeza de que eu era feliz porque não há uma foto sequer em que eu não esteja sorrindo de orelha a orelha. Ora, uma criança que não sorri não é feliz, também digo isso de uma maneira geral porque existem crianças felizes que não ficam sorrindo o tempo todo como eu ficava. Talvez eu fosse feliz demais. Tudo em mim sempre foi incrivelmente intenso. Mas com doze anos nos mudamos de cidade e eu parei de sorrir, pelo menos nas fotos. Odiei a adolescência, odiei a nova cidade, portanto não havia motivo para sorrir. Felizmente resgatei o sorriso depois. Ele voltou menos inocente, mais amadurecido, mais sofrido, um tanto malicioso, um bocado sarcástico, mas voltou. É claro que da primeira vez que me assassinaram eu perdi um jeito de sorrir que eu tinha, como dizia o Mário Quintana. Os tempos da inocência haviam acabado.
Foi nos tempos da inocência que eu fui contar para minha mãe, em segredo de Estado e voz baixa, que meus tios pra lá de adultos estavam trancados no quarto. Ela me explicou sorrindo que eles podiam ficar trancados porque eram casados. E foi com muita inocência que fiquei sabendo pelas amigas que para se fazer um bebê era preciso ficar trancado no quarto, pois não é que eu julgava que bastava casar para que Deus trouxesse os bebês? Para mim, as barrigas das mães cresciam automaticamente depois que se casavam. E o número de filhos? Bem, isso era lá com Deus, era Ele que decidia. Para algumas famílias vinham dez, para outras, oito, para a nossa, Deus mandou seis filhos.
Foi nos tempos da inocência que eu assisti à morte de minha avó paterna, vi seu corpo sem vida, pensando que a morte existia apenas para os avós e pessoas bem velhinhas que de preferência não fossem de minha família, ou seja, sem desconfiar nem um tiquinho que era para todos os mortais. Também foi nos tempos da inocência que eu, encantada, aprendia coisas fantásticas na escola, sem ainda ter que me preocupar com a competição que surgiu como uma praga assolando a humanidade. A vida era quase como estar no Paraíso criado por Deus. Depois da escola era só botar uma roupa velha e procurar mangas maduras que se ofereciam prodigamente no capim de nosso quintal. Minha mãe assistia a tudo da janela, cheia de risos e alegria.
O mundo era mágico e a vida era bela. Era minha inocência intacta e genuína, minha feliz vida de menina.
Acaso haverá algo mais bonito do que a inocência de uma criança?