Pior que a dor
É a letra e a fala do doutor
Sendo uma pessoa bastante alérgica, raramente saio à rua sem um lenço, com o qual tento me proteger do vento, poeira e outras intempéries. Pois bem, resolvi procurar um médico famoso em busca de um tratamento eficaz. Ao entrar em seu consultório ricamente mobiliado, fiquei admirada com tantos diplomas, certificados, prêmios e títulos. Após as devidas apresentações e narração da minha condição de alérgica, disse-me ele:
– Com base em todo o seu relato, não há dúvidas, a senhora sofre de um edema de Quincke.
Assustada, perguntei:
– O que é isso?
– É simplesmente uma reação de seu organismo a um alérgeno.
– Isso é grave? Perguntei eu, ao que ele respondeu:
– Bem, isso pode provocar uma taquipnéia ou uma hipobaropatia e às vezes, levar a uma ambliopia e até mesmo a uma dispnéia paroxística. Estudando todo o relato de sua anamnese, penso que a senhora precisa de um agente terapêutico que iniba suas reações alérgicas, talvez uma droga anti-histamínica. Evite aspirar poeira carregada de asbesto para não agravar seu estado com uma pneumoconiose. Saiba que a assepsia é fundamental. Não pretendo lhe receitar um tratamento paliativo porque é preciso erradicar a causa de sua enfermidade. O melhor mesmo são medidas profiláticas que podem lhe proporcionar uma melhor condição física. Entretanto, é necessário que a senhora leve em consideração que já está caminhando para a senilidade e aceitar certas limitações, tendo em vista que já não é nenhuma jovem de vinte anos. Em casa, procure se manter em posição decúbito supino que facilitará uma melhor circulação cerebral e cardíaca.
Assim que consegui uma brecha, tentei descrever um sintoma:
– Doutor, depois de pegar um vento, às vezes sinto uma vertigem. Será que é da alergia? E ele:
– Essas sensações subjetivas ou objetivas de movimento do corpo em sentido giratório ou de movimento de desequilíbrio são absolutamente normais no seu quadro clínico. Para o momento, vou lhe receitar um acetilsalicílico que certamente vai amenizar sua condição respiratória, mas é preciso cautela no uso, porque essas drogas saliciladas constituem ciladas para o paciente, pois, se o livram da sensação alérgica, o empurram para uma dependência física. Use e abuse de balneoterapia que tem se mostrado muito eficaz no combate aos diversos alérgenos. Vou lhe preparar a receita.
O médico virou-se para o computador de última geração e desatou a digitar minha receita. Ao preparar o papel, a impressora deu pau e ele, um tanto desapontado me explicou que, às vezes, a máquina ingeria uma quantidade excessiva de papel o que ocasionava uma obstrução das vias impressoras. Levantei-me irritada e saí do consultório, sem que ele percebesse minha ausência. No caminho, passei em casa de D. Ditinha, amiga de minha mãe, que me arrumou um punhado de raízes de chicória velha, cardo santo e hortelã. Fiz um chá, embrulhei-me em uma manta quentinha e dormi profundamente, sem chiado no peito e nariz entupido.
Glossário:
– Edema de Quincke: tipo de manifestação alérgica.
– Alérgeno: qualquer substância capaz de provocar reação alérgica.
– Taquipnéia: distúrbio causado pela diminuição do oxigênio do ar.
– Hipobaropatia: mal das altitudes, decorrente de diminuição do oxigênio do ar.
– Ambliopia: diminuição da visão.
– Dispinéia paroxística: espécie de asma.
– Anamnese: história de um paciente durante a consulta médica.
– Droga anti-histamínica: antialérgico.
– Asbesto: amianto.
– Pneumoconiose: doença do pulmão provocada por inalação de pó ou poeira.
– Assepsia: medidas adotadas para impedir a chegada de germes.
– Medidas profiláticas: medidas preventivas.
– Decúbito supino: posição em que o paciente fica deitado com os pés da cama elevados a 30 cm do solo.
– Acetilsalicílico: aspirina.
– Saliciladas: que contém o componente da aspirina.
– Balneoterapia: uso terapêutico de banho.