O cara sempre fora meu amigo, para dizer a verdade, coisa de mais de quarenta anos. Passamos os dois num concurso público, trabalhamos juntos na mesma seção, eu frequentava sua casa, era padrinho de seu filho mais velho. Nossas mulheres também eram amigas, faziam quitutes em nossas reuniões de finais de semana. Nossos filhos estudavam e brincavam juntos, enfim nada havia que eu não soubesse dele e ele de mim. Era realmente uma amizade verdadeira. Isso não existe, você poderá dizer argumentando que pessoas são sempre falhas e cheias de misérias humanas. Bem, é possível, mas o que realmente causou o fim de toda aquela amizade nada teve a ver com fraquezas humanas como inveja ou traição. Mesmo depois de muitos anos, as pessoas ainda me perguntam a razão de nosso afastamento. Eu me calo. Não ouso contar a verdade, a não ser para a tela em branco que recebe o que não tenho coragem para falar.
Damásio era seu nome. Era uma pessoa muito legal, isso mesmo. Eu o admirava profundamente. Ele estava sempre pronto para ajudar quem quer que fosse. Era engraçado, inteligente, enfim, boa pessoa. Sua figura física não era daquelas que as mulheres viviam suspirando, não, isso não. Damásio mais parecia um tísico, branco demais, nariz adunco, magro de ruim.
Bem, como sempre fazíamos em pescarias ou passeios em geral, lá estávamos voltando para casa já de noite, não tarde, talvez umas sete horas, hora em que o céu já está totalmente escuro no inverno. Eu, particularmente, não sou de sentir muito frio, mas por duas vezes, ainda quando estava claro, senti um calafrio esquisito. Dizem que as coisas trágicas, os acontecimentos de desastre, enfim as coisas do mal sempre avisam. A gente é que nunca tem olhos, nem ouvidos, nem entendimento para compreender. O carro enguiçou, aquela coisa chata de parar mesmo no meio da estrada, no meio do nada literalmente porque não havia um posto, uma casa, uma luz que não fosse a da lua e de umas poucas estrelas que brilhavam sem vontade, opacamente. Ao contrário de outras vezes em que sempre voltamos para casa animados e falantes, estávamos os dois quietos, estranhamente quietos.
Bom, fizemos o que foi possível para reanimar o carro. Nada. O que atrapalhava mais era a escuridão que começou a ficar densa. A lanterna? Você certamente perguntará, sim porque dois homens feitos que habitualmente conduzem carros à noite não podem se esquecer de tal item de segurança, como também ferramentas e outras coisas importantes que alguém de bom senso leva no carro quando se vai para outros lugares, ainda mais na montanha. Pois voltávamos de lá, da tal montanha e não achamos a lanterna. A estrada cheia de curvas. O fato é que estávamos os dois ali, na mais completa escuridão, com um carro que não funcionava. Nada havia a ser feito a não ser caminhar seguindo a estrada que tínhamos pela frente. Decidimos seguir a pé e fomos os dois. A escuridão era tamanha que eu mal enxergava meu amigo. Apenas se via a lua enorme, cheia, mas que estranhamente não radiava claridade alguma, ou era impedida por uma espécie de fog londrino. Nunca eu havia visto uma lua tão grande em noite tão escura.
Em determinado ponto, ele me chamou:
– Téo, eu preciso te contar uma coisa.
Confesso que estranhei a seriedade dele. E eu disse:
– Fale Damásio, estou bem aqui, apesar do negrume da noite.
– Téo, eu sou um lobisomem.
Aí não pude deixar de rir. Ri com gosto. Só ele mesmo para desfazer o mal-estar provocado pela escuridão e pelo aborrecimento de estarmos naquela situação. Ele não riu, bem, eu não o via, mas sabia pelo seu silêncio que ele estava sério. Entretanto, eu conhecia muito bem meu amigo, e este seu lado brincalhão e espirituoso era o que eu mais gostava nele. Ele era capaz de fazer brincadeira com a coisa mais séria do mundo sem ser inconveniente. Era fantástico. Eu não parava de rir. Era um acesso de risos desses em que a gente não consegue parar. Eu não tinha esse ataque há muitos anos e isso me fez muito bem. Ele esperou pacientemente que eu parasse de rir, ou que pelo menos fizesse uma pausa. Aí ele veio à carga:
– Téo, é sério, nunca falei tão sério em minha vida. Veja bem, eu jamais contaria isso se você não estivesse correndo risco de vida. E está agora. Olhe, eu vou contar tudo depois com calma. Você sabe que é meu melhor amigo, que eu nunca lhe faria algum mal, mas essa situação de hoje é atípica. Não deveríamos estar aqui, não agora, com essa lua cheia. Eu preciso que você corra o mais rápido que puder.
É claro que desabei no riso de novo. Eu só conseguia dizer:
– Pare, pare com isso que eu vou começar a passar mal. Esta sua é de gloriosa como dizia minha mãe.
E ele:
– Téo, eu juro, você acha que em situação normal eu contaria isso para você ou para qualquer outra pessoa? Quem iria acreditar? Ninguém! Nunca! Por que eu nunca contei? É por isso. Porque ninguém acredita. Mas eu não contava com isso, com nós dois nessa noite preta. Sabe, não é sempre toda noite de lua cheia que eu viro lobisomem, mas quando vou virar eu sei direitinho, eu sinto. Aí não respondo por mim, não sou mais eu. Eu tenho medo do que pode acontecer. Suma de mim!
Aí nesse momento ele gritou e estava bravo pra caramba. Eu comecei a estranhar. Também fiquei bravo:
– Chega dessa brincadeira sem graça. Nem sei quanto falta pra gente alcançar um lugar civilizado, com luz e tudo.
Mas desse momento em diante, caiu um silêncio sepulcral. Ele não falava nada. Está aborrecido porque eu fiquei bravo, pensei. Mas continuei andando. O mais estranho é que eu não ouvia nenhum passo a não ser o meu e a sensação de que ele tinha sumido era muito grande.
Aí chamei:
– Damásio, desculpe, mas você está me assustando. Fale alguma coisa.
E nada. Daí a pouco comecei a ouvir um barulho, parecia o som de pisadas ou de cavalgada de um animal pesado, como se fosse um porco grande ou um touro ou sei lá o quê. Instintivamente comecei a correr e o barulho aumentando, significando que fosse o que fosse já quase me alcançava. Desabalei. O pior é que não sabia por onde corria, se continuava na estrada ou não. A coisa piorou. Comecei a ouvir algo como um resfolegar, era de um bicho, aquilo não era humano. Eu corria feito um doido e rezava, logo eu que não era disso. De repente devo ter saído da estrada, senti um baque, tudo rodava. Juro que não sei o que aconteceu exatamente, se o bicho me pegou ou se eu rodei barranco abaixo. Desmaiei e não vi mais nada.
Só acordei no dia seguinte no hospital. O próprio Damásio e outros roceiros me encontraram caído e esfolado numa vala, coisa de cinco quilômetros longe do carro, isso ele contou para todos. Contou a versão dele, é claro. Disse que caminhávamos na escuridão e que eu de repente sumi, ou seja, que não respondi mais. Ele insistiu que gritou meu nome várias vezes, mas não teve alternativa senão esperar que clareasse o dia, pois a escuridão era medonha. Eu tinha arranhões feios nas costas que pareciam ter sido feitos por garras afiadas. Estava queimado pelo frio e esgotado. Sinceramente, não me lembro do que aconteceu quando caí ou quando fui derrubado. Quando minha mulher e meus amigos me perguntaram eu disse que não me lembrava de nada.
Damásio foi me visitar no hospital. Estava mais branco do que nunca e me olhava com pena. Não dei uma palavra sequer com ele. Todos perceberam que alguma coisa acontecera, mas eu é que não ia dizer e passar por trouxa ou maluco. Assim que tive alta tratei de me mudar com a família para bem longe. Mas antes fui procurar por um dos caboclos que estava presente quando me acharam desmaiado. Ele me contou que nunca vira nada igual, que o capim alto fora derrubado como se uma manada inteira estivesse desembestada pelo campo.
Nunca mais vi Damásio nem ouvi falar dele. Hoje revejo nosso passado e ligo muitos fatos que na época passaram desapercebidos. Ele era um homem bizarro, tinha comportamentos esquisitos, mas daí a … Bem, se ele era de fato um lobisomem não sei dizer, mas que aquela noite era de uma estranha lua cheia, isso era.