O consagrado pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) mal poderia supor que uma tela pintada por ele em 1638 contribuiria para o estudo de uma doença descoberta mais de três séculos depois. O quadro foi usado pelo médico J. Dequeker, da Universidade Gasthuisberg, Bélgica, para traçar um panorama histórico da síndrome de hipermobilidade — doença descrita em 1967 e definida como o aumento anormal da mobilidade das juntas. O trabalho, publicado em setembro nos Anais das Doenças Reumáticas, ajuda a consolidar uma nova frente de pesquisa em saúde: a medicina na arte, que já tem adeptos no Brasil.
As personagens de As Três Graças (1638-1640, exposta no Museu do Prado, Madri) apresentam sintomas da síndrome de hipermobilidade
Dequeker procurava sinais de distúrbios reumáticos em pinturas antigas quando se deparou com As Três Graças, de Rubens. A tela mostra três irmãs — uma delas supostamente a segunda mulher do artista — que apresentam traços típicos da síndrome de hipermobilidade adquirida hereditariamente. “Encontrar essas características em pinturas antigas prova que os artistas, observadores afiados da natureza, poderiam descrever ou ao menos registrar as patologias muito antes que os médicos”, diz Dequeker.
Entre os sintomas mais acentuados em As Três Graças, destacam-se escoliose, lordose, pés chatos, hiperextensão das juntas do metacarpo e sinais de Trendelenburg positivo (elaborado pelo médico alemão de mesmo nome, o teste de Trendelenburg é positivo quando o quadril “cai” para o lado oposto ao que seria natural para equilibrar o peso do corpo).
Na tela, a mulher do meio mostra claramente a escoliose manifesta na forma de S na coluna e sinal de Trendelenburg positivo. Ela está em pé sobre a perna esquerda e a nádega direita está caída em vez de erguida, como aconteceria em uma pessoa normal. “Quando um paciente carrega o peso do corpo todo em uma perna (como a mulher do meio), a pélvis pode ser ligeiramente erguida no lado oposto para manter o contrapeso”, explica Dequeker. “No caso da figura, ela está sobre a perna esquerda e o quadril direito está mais para baixo que para cima.”
Um exame mais atento mostra que a mulher da esquerda tem hiperextensão das juntas do quarto e quinto dedos e pés chatos, e que as três irmãs têm lordose na espinha lombar. Segundo Dequeker, se todos os traços fossem encontrados na mesma pessoa, o diagnóstico seria de síndrome de hipermobilidade, mas eles aparecem separados. “Como sabemos que a pintura retrata três irmãs, os sintomas apresentados poderiam ser diagnosticados como síndrome familiar de hipermobilidade.”
No Brasil, pesquisadores trilham o mesmo caminho e utilizam a arte para melhor entender a medicina. O médico José Geraldo Specialli, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, estuda a cefaléia a partir de obras de arte. Luís Antônio de Lima Resende, outro médico da mesma instituição, analisou pinturas e esculturas antigas para traçar um panorama da síndrome de Romberg — doença que atrofia metade do rosto dos pacientes.
Fonte: Ciência Hoje