A chamada tradição da arte ocidental, que é a nossa tradição, remonta aos gregos antigos com sua paulatina e bem-sucedida apreensão da realidade. Os desenvolvimentos da escultura grega mostram como, por volta do século V a.C., aquela arte atingiu um excepcional grau de imitação da natureza (mimesis), que se manteve exemplar por séculos e séculos – como se viu no texto anterior, que discute a verossimilhança.
No século XIX, porém, várias contribuições da ciência estimularam os artistas a pesquisas que se afastavam da busca da imitação. Uma contribuição fundamental sob esse aspecto foi a que trouxe o desenvolvimento da fotografia.
Os primeiros experimentos relativos aos processos fotográficos foram feitos na França entre as décadas de 1820 e 1830, e não demorou muito para que nos centros urbanos surgissem estúdios onde as pessoas podiam fazer seus retratos e de suas famílias a um custo bem inferior ao dos retratos em pintura. A imagem obtida do retratado pela câmera fotográfica seduzia imediatamente por sua fidelidade ao modelo, independendo das habilidades de um pintor. Assim surgia um método veloz, eficiente, prático e barato de se obter uma imagem natural.
Apesar de ter havido artistas que se utilizaram da fotografia para melhor copiar o modelo na tela ou na escultura, e ainda evitando as longas e torturantes sessões de pose, de certo modo a fotografia liberou definitivamente a arte do jugo da imitação, legitimando as pesquisas plásticas que já vinham acontecendo noutras direções. Por outro lado, a ampliação dos usos expressivos da linguagem fotográfica deu-se rapidamente: logo se percebeu que a técnica não servia apenas para fins documentários, que fotografia podia ser arte. Como qualquer desenho ou pintura, podia, por exemplo, criar composições originais ou imitar composições típicas da pintura [fig. 1: Louis-Jacques Mandé Daguerre. Natureza-morta. 1837]. Podia, contudo, explorar uma característica que lhe é exclusiva: a capacidade de sugestão da imagem considerada fiel, ‘real’, ‘verdadeira’.
Não há quem não conheça e não se encante com a fotografia de um casal se beijando numa rua de Paris publicada pela Life Magazine em 1950 [fig. 2. Robert Doisneau. “O beijo no hôtel de Ville” (“Le baiser du trottoir”).1950]. Essa imagem, insistentemente veiculada até os nossos dias, acabou por tornar-se fundadora de uma espécie de aura de romance que se vinculou firmemente àquela cidade.
Doisneau (1912-1994), o fotógrafo francês autor da célebre foto, era um autodidata que se definia um “pescador de imagens”, numa brincadeira em relação ao termo “caçador de imagens” empregado pela fotografia jornalística. Ele, de fato, vivia mergulhado no meio da gente que clicava, participante, inserido no ambiente. Suas imagens são composições também, como as de um pintor. Com seu olhar certeiro, ele elege no mar da cidade o quadro que deseja. Sim, ele compõe. Era capaz de passar horas e horas no mesmo lugar esperando em forma de cena viva a composição imaginada ou compondo com os quadros que se apresentavam diante dos olhos. O enquadramento jamais é fortuito, é o próprio ato estético dessa linguagem. E a arte está justamente no resultado da espera desse pescador de imagens, em sua agilidade para captar o momento e na capacidade única que seu olhar possui de construir e delimitar a cena viva com a rapidez necessária e de modo a criar toda uma história que, adivinhada ou imaginada, certamente convida o espectador à fantasia.
O beijo na calçada parisiense em 1950 difundiu e fixou pelo mundo uma idéia que pode ou não ser verdadeira: a da Paris povoada de seres belos e apaixonados, onde o romance estaria por tudo. Esse é o poder da fotografia como arte: não apenas documentar a movimentada calçada do Hôtel de Ville [fig.3; belíssimo e antigo edifício, sede da administração da cidade de Paris] do modo mais verossímil possível, com exatidão cartográfica ou de documento antropológico, mas captar momentos, instantes que poderiam ser negligenciados, despercebidos pelo olhar do passante e com eles manipular a realidade no sentido de recriá-la, revelando ou sugerindo sentidos ocultos, confundindo e surpreendendo. Por ser, a priori, a versão bidimensional exata do mundo, a fotografia é um instrumento poderoso de convencimento. É ‘prova’, testemunha de fatos, de atos. Parece sempre falar a verdade. E quanto mais parece dizer a verdade, mais pode enganar. O romance da calçada de Paris não mora exatamente em Paris, mas em nós, espectadores, e apenas por obra do artista fotógrafo.