Na calada da noite
Um buraco na praça
No fundo da alma
Habita uma traça
Começou devagarzinho e quase ninguém prestou atenção. O que é uma rachadurazinha na rua? A gente passa pra lá, passa pra cá e não dá importância. Mas, no dia seguinte aumentou um pouquinho e assim foi indo. Sem querer plagiar “A jangada de pedra”, de Saramago, foi isso mesmo. A cada dia, o buraco que era pequenininho foi aumentando. E bem no coração da cidade, na praça. Aí, logicamente, vieram as providências. Homens trabalhando para encontrar o cano furado porque naturalmente devia haver algum vazamento. Arruma aqui, arruma ali e pronto. Taparam o buraco. Ocorreu então que, na calada da noite, sem que ninguém pudesse ter visto, o buraco abriu-se novamente, como se tivesse vida própria, como se soubesse exatamente o queria fazer, como se quisesse se vingar de alguma coisa. Vieram os homens, trabalharam, encheram o buraco de terra, vistoriaram canos, tubulações, estava tudo certo. No dia seguinte, o buraco voltou, agora parecia mais raivoso, aumentou a rachadura, como se fizesse mesmo de propósito. Dava a impressão de que ele queria ir aumentando proporcionalmente, diariamente, e ficava contrariado com o trabalho dos homens.
A coisa começou a tomar proporções sobrenaturais. Os boatos correram e os habitantes da cidade começaram a frequentar o buraco e arriscar palpites. Uns diziam que era coisa do outro mundo, outros mais sarcásticos diziam que iriam construir uma grande piscina no centro da cidade, seguindo o modelo do “Piscinão de Ramos”, outros ainda, que alienígenas estavam disfarçados no meio do povo e tramavam algo terrível. Os dirigentes municipais partiram para uma reunião de urgência e mandaram vir peritos da capital e até do estrangeiro. Depois de muito confabular, decidiram deixar o buraco seguir o seu curso para ver no que dava. Agora, parecia que o buraco aumentava livre e feliz, seguindo seu destino misterioso. Durante todo o dia, geólogos, arquitetos, engenheiros, enfim, peritos de toda a ordem seguiam a rachadura, faziam anotações em pranchetas, mediam, discutiam entre e si e trataram de isolar o espaço para que o povo curioso não atrapalhasse as investigações e até pelo perigo de algum acidente. A primeira conclusão a que chegaram foi tenebrosa: o buraco seguia por toda a praça, como se quisesse engolir todo o jardim e seus contornos. Essa conclusão era para ser segredo, para não causar pânico, mas como sempre os segredos vazam, logo toda a população já sabia. Muitos curiosos permaneciam na faixa permitida, uns se benziam, outros choravam.
E o buraco avançando. Foi aí que descobriram algo incrível! De dentro do buraco que crescia em largura e profundidade começou a sair um líquido estranho, vinhoso e viscoso. Ninguém sabia o que era aquilo. Um menino intuitivo, de mãos dadas com a mãe arriscou seu parecer: mãe, o buraco está chorando! Logo foi colhida uma amostra e levada para um laboratório de última geração como aqueles do CSI Miami, do seriado da televisão. O resultado esperado saiu em poucos dias – pasmem! Era sangue misturado com lágrimas, ou melhor, era algo parecidíssimo com sangue e lágrimas. Sem dúvida, o buraco era de ordem sobrenatural, espiritual. Nova reunião foi convocada, e dessa vez os líderes religiosos foram convocados. Os dirigentes acharam por bem também convidar os habitantes mais antigos da cidade, o que provocou uma indignação por parte de alguns que não acreditavam no poder e na sabedoria dos idosos. Nesse meio tempo correu um boato de que havia um canal daquele líquido que subia até a Igreja Matriz, ou melhor, que o líquido lacrimal e sanguinolento descia de alguma imagem sacra até o buraco da praça. Antes que a turba furiosa invadisse a igreja em busca de relíquias, o padre mandou fechar as portas para preservar o templo.
E o buraco avançando. E o estranho líquido escorrendo por todas as fissuras. Finalmente o povo resolveu agir. Há muito tempo que não se via uma união tão fraterna e tão calorosa entre as pessoas. Todos sentiram no próprio coração a dor da praça destroçada, símbolo do coração da cidade. Brotou um sentimento esquecido – a solidariedade! Fizeram reuniões públicas em todos os bairros, uns inteiravam-se dos problemas dos outros. Imaginem só! Reuniram-se para resolver o problema do buraco da praça e sem querer, foram tomando conhecimento de outros problemas que uniram as pessoas da cidade. Há males que vêm para o bem, dizia uma senhora de cabelos brancos. Até que o buraco parou de avançar e foi até retrocedendo, um pouquinho aqui, um pouquinho ali e dentro de sete dias o buraco fechou. Na última página do inquérito que tratava do assunto pôde ser lida a seguinte conclusão: a cidade precisa ser amada.