Naquele dia acordei e fui trabalhar. 06h30min atendi uma criança que chegou à madrugada ao hospital. Tinha nove meses, caiu da cama dos pais, cama alta. Bateu a cabeça. Resultado: fratura craniana parietal direita extensa. Família tensa, mas tudo bem, afinal a criança estava bem e bastava observar por mais um dia, repetir um exame e se tudo ok, alta!
Depois, em outro hospital, antes de começar, fui tomar um café da manhã. No caminho aconteceu…
Ele, um amigo, de longe me viu e se alegrou. Com reverência me cumprimentou como se eu fosse um rei, mesmo sendo ele 24 anos mais vivido que eu!
Pôs-se a falar com alegria: meu amigo, a melhor coisa que me aconteceu esse ano foi esse câncer. Assustei, mas fiquei silente, sabia que ia aprender…
Na vida, disse ele, a gente se preocupa com muitas picuinhas, perde tempo, fica querendo saber o que o outro pensa ou espera de nós; e no fundo uma doença como essa nos ajuda a perceber que tudo isso é uma perda de tempo enorme. A vida é algo maravilhoso e essas preocupações bobas nos distraem dessa grande maravilha de viver o momento presente, onde agora é claro para mim, cada dia a mais, que sempre tem algo milagroso acontecendo. Você sabe que não sou religioso, mas não é preciso ser religioso para acreditar em milagres, você está me entendendo?
Estou disse, mantendo-me receptivo ao transbordamento espontâneo sequencial das pérolas que aquela experiência proporcionou a esse amigo…
Pois é, sabe que desde que comecei minha quimioterapia em fevereiro (estávamos nos últimos dias de maio), sempre recebo as aplicações em um local na presença de outros amigos cancerosos que invariavelmente se mostram, como eu, muito gratos à experiência do câncer. Parece haver uma constante que se repete: preocupação com pequenas coisas que de modo algum têm valor quando olhamos a vida como essa breve passagem pela terra. Eu diria mesmo, enquanto canceroso, que o câncer é a doença do apegado e te explico o porquê. Hoje percebo como eu estava apegado a coisas que hoje me parecem picuinhas, que várias experiências e pessoas me diziam sobre deixar isso para lá, mas eu nunca escutava. Essa doença, no entanto, foi como se aquilo que as pessoas fora de mim tentavam dizer, se tornasse uma delas que agora grita a partir de dentro de mim! Ora, encontrar com alguém que nos convida à reflexão e depois vai embora é uma coisa, mas escutar alguém gritando 24h por dia dentro de você que algo não vai bem, é outra completamente diferente meu amigo! Não tem como não escutar.
Por isso partilho com você esse meu desabafo. Meu amigo, o câncer, é a doença que nos auxilia a soltar, a desapegar e a dissolver alguma coisa que não estamos conseguindo; é um fogo que dissolve, um fogo que te devolve a você mesmo. Nesse momento me sinto muito leve, muito livre, muito pleno, muito feliz. O câncer derrete em você tudo aquilo que não faz mais sentido! Aquilo que você escreve em seu livro sobre a saúde ser consciência é muito acertado meu amigo. Estar consciente da vida e de suas maravilhas é outro tipo de “quimioterapia” que se eu houvesse feito antes, talvez não tivesse a necessidade de passar pelo que estou passando.
Desculpe-me o desabafo, nem perguntei se você estava com tempo para escutar esse tipo de coisa logo cedo, mas tenho andado tão feliz com essas novas percepções, que precisava partilhar com você. Veja que uma série de coisas que me preocupavam, hoje ficaram tão pequenas e distantes, que mal consigo vê-las e escutá-las. O curioso é que todo canceroso que converso nessas minhas andanças nos últimos seis meses contam algo semelhante!
A propósito, existem alguns poucos que se tornam amargos e tenho uma hipótese para eles. São aqueles que se negam a soltar e a deixar irem embora as situações que não podem controlar, ou seja, aqueles ainda muito apegados. Quando digo apego, digo não apenas a coisas de natureza material, mas a emoções negativas, mágoas, pensamentos obsessivos de que algo tenha que ser sempre do modo como desejam que seja. É como se quando somos escravos das emoções apenas reagíssemos e que apenas ao pensar de fato é que se torna possível o agir, retomar o viver. Enfim, às vezes noto raiva, revolta, inconformidade, medo, todos os sintomas de quem deseja obstinadamente poder e controle sobre a vida. Mas veja você o que digo: a vida não foi feita para ser controlada ou possuída, senão vivida e partilhada.
Curioso, sendo já setenário, vir a aprender com algo que em toda minha vida entendi como sendo um mal. Como você pode ver meu amigo de fato conforme o dito popular: há males que vem para bem, e para mim foi assim.
Poxa vida, disse a ele, essa experiência e preciosas palavras precisam ser contadas para as pessoas, se me permitir. Comprometo-me a preservar seu anonimato no processo de extrair a essência dessa sua experiência transcendente.
E assim o faço caro leitor.