A casa ainda conservava o aroma daquela jóia da culinária, que me foi presenteada.
Abracei o vidro, imaginei o seu inigualável sabor e parti.
A chegada em casa, após um dia ausente, é quase sempre movimentada. Rayane me chamava para ajudá-la no dever escolar, minha outra filha Kelvian também atraía a minha atenção, sugerindo que os afazeres da noite seriam longos.
Apoiei o vidro na mesa da cozinha e saí em direção à sala, quando ouvi um ruído. Voltei-me para a mesa e não quis crer no que meus olhos contemplavam: o recipiente – encostado às pressas – ficara em falso, tombou, ganhou energia própria, rolou sobre a mesa e encontrou o caminho do chão. Cheguei a pensar em saltar no ar para ampará-lo, mas seu vôo para o abismo foi mais rápido. Somente meus olhos testemunharam a inesquecível cena.
O som do vidro se quebrando ecoou em toda a casa, seguido de um desértico silêncio. Toda a família correu para o local do acidente. Sem arriscarmos uma só palavra, lá permanecemos mudos, como num cortejo fúnebre, velando os restos mortais do nosso desejo.
Lágrimas não produzem som, mas as que escapavam do rosto da Rayane pareciam bradar tão alto quanto o choro do cristal quando se quebrou.
Falei que os acidentes não acontecem por acaso, porque em suas causas quase sempre estão presentes a desatenção e a imprudência. Estas são as raízes dos atos inconscientes.
Meu doce lar já dormia, quando me pus a escrever sobre o fato. O gosto que não senti poderei saborear cada vez que abrir estas páginas – refleti, deitei, adormeci.
As franjas douradas do Sol na parede do meu quarto anunciavam uma alegre manhã. O céu estava pintado de um azul quase absoluto. Os matizes sutis dos raios de sol pincelavam um discreto verniz nas árvores, cujos galhos, em contraste com o imenso azul, faziam-me pensar nas letras do Criador escrevendo no infinito o mais sublime poema de amor.
O telefone soou:
– Filho querido, bom dia! – exclamou minha mãe.
– Gostou do presente? As meninas provaram?
– Desta vez a sua arte alcançou a perfeição, mãe, foi o doce mais saboroso que já provei em minha vida! – respondi.
Kelvian, que observou a conversa, advertiu-me:
– Pai, você não falou a verdade, mentiu para a vovó!
– A verdade franca soaria inoportuna e cruel naquele momento, ferindo o amor que deslizava na voz de sua avó; por isso, minha filha, eu não menti. Não se experimenta um presente apenas com os sentidos físicos, mas, sobretudo, com os dons superiores da alma. Aquele foi sim o doce mais saboroso que eu já provei na vida; provei sem comê-lo e senti seu gosto sem tocá-lo, porque o degustei com o paladar do mais profundo sentimento.
Kelvian sorriu, saiu e me pus a refletir.
Compreendi que a gratidão é o fixador espiritual que eterniza os mais sublimes sabores em nossa alma, e os mais raros aromas em nosso coração.
Naquele pote, mais do que um doce gostoso, havia o amor em sua forma mais pura: o amor de quem dá sem nada esperar em troca, além do prazer de ver felizes os seres amados.
Quantas horas de vida minha mãe consagrou à feitura daquele doce! Quantos pensamentos e sentimentos passaram em sua mente enquanto o preparava! Havia um conteúdo mais nobre naquele vidro. Foi tudo isso que eu provei com o paladar da gratidão, que nos permite sentir o néctar mais puro que se pode conhecer na vida.
Minha mãe levou um dia preparando a iguaria. E o Supremo Criador do Universo, em quanto tempo preparou a compota dos conhecimentos superiores, que nos são diariamente oferecidos?
Muitos chegam ao fim da vida, olham o tempo percorrido e percebem que não provaram o seu conteúdo essencial. Nesse momento é possível observar que o pote se quebrou, e que só foi experimentado pouco mais que o superficial aroma, que se desprende de uma vida fútil e material.
Foi preciso o vidro estilhaçar para eu compreender o valor maior do seu conteúdo.
Minhas reflexões foram mais longe ainda:
Em que pote estamos guardando os nossos valores mais preciosos? E os seres que amamos?
Por que tantos sentimentos, que um dia juramos ser eternos, morrem sem deixar qualquer rastro no nosso mundo interior?
Por que amizades viram fumaça no tempo?
Em que recipiente estamos conservando a essência dos nossos sentimentos?
Os sentimentos também podem quebrar quando são apoiados em falso na delicada mesa do agir diário. Não é preciso esperar que se despedacem para reconhecer a grandeza de seu conteúdo.
Nota: Alguns meses depois, contei o fato à minha mãe. Seus olhos marejaram lágrimas sentidas, como se o vidro se quebrasse naquele instante. Ela continua me oferecendo doces, mas nunca mais em vidros. Assim precisamos fazer com nossos sentimentos: guardá-los no pote inquebrável da nossa consciência, para que superem o fugaz tempo das horas e se eternizem como força imortal em nosso coração.
Este conto é uma homenagem à minha querida mãe Isabel.
É administrador, empresário, consultor na área de desenvolvimento do potencial humano e docente da Fundação Logosófica. É profundo investigador dos segredos da mente e dos conhecimentos superiores que envolvem o sentido da existência.Coluna “Reflexões Sobre a Vida“.