O sociólogo e gastrônomo americano Barry Glassner, autor de O Evangelho da Comida (The Gospel ofFood) combate em seu livro o “evangelho do nada”, como chama os preceitos que dominam a sociedade norte-americana: a fixação em dietas e a valorização de alimentos “pelo que eles não contêm” – porque não tem óleo, nem carboidrato, nem sal ou açúcar. Descreve, dessa forma, o modo contemporâneo e urbano de se alimentar, quando a indústria pasteurizou os sabores, fazendo-nos perder a capacidade de discernimento das nuances sensoriais que um alimento pode nos agregar. Os excessos da industrialização e das dietas, nos privou dos sabores e dos cheiros. Comida privada de significados, vazia de sentimentos, que nada traz ao estômago nem ao coração.
Ocorre-me de pensar no tempo em que surgiu a alta gastronomia, no século XVIII, época de AntoninCarême, período presidido pelo iluminismo – que “entendia a natureza como um objeto sobre o qual a razão deve se debruçar, extraindo dela um conhecimento “essencial” e “verdadeiro”. Refletindo a filosofia do seu tempo, os molhos, criados por Carême constituiriam a essência das matérias-primasnele utilizadas, representariam a alma daquela preparação.
Tendo esses dois contra-pontos em mente, reflito sobre os caminhos da nossa alimentação atual e as questões da sustentabilidade, quando a Organização Mundial da Saúde declara que já existem 42 milhões de crianças de até 5 anos obesas no mundo. Enquanto isso, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação alerta: seremos 10 bilhões de pessoas em 2050. E poderá não haver comida para todos.
E é na hora de economizar a natureza que a ciência sai dos laboratórios e vai para o fogão. Os cientistas estão vasculhando o jeito de aproveitar melhor os alimentos. O físico-químico HervéThis, um dos idealizadores da gastronomia molecular, pensou na “cozinha nota a nota”.
O titulo vem de uma metáfora musical: uma cenoura, por exemplo, seria um acorde completo de uma canção. O açúcar, a água ou a cor que compõe a raiz, seriam as notas musicais. Com a cenoura separada nota a nota, há menos desperdício de comida. “Isso não significa modificar ou artificializar os alimentos, mas uni-los a partir de seus componentes, sem precisar jogar nada fora”, diz Hervé. No armário da cozinha, segundo ele, haverá pacotes com compostos de ácido tartárico, ácido cítrico e polifenois. “São elementos tão úteis. Da mesma forma como hoje utilizamos o ágar-ágar (gelatina de algas), as emulsões ou gelatinas, utilizaremos os compostos. Eles estarão disponíveis, e as pessoas vão perder o medo de fazer sopa com polifenois. É mais simples e proveitoso”.
Fundada em 2004 e instalada em Sant Benet desde 2007, a Fundação Alicia reúne nessa pequena cidade da região da Cataluña, na Espanha, uma turma de químicos e cozinheiros que, com rigor científico, pensam o futuro da comida. Em uma moderna cozinha de aço e vidro com vista para as montanhas, eles quebram ovos, separam leite, açúcar e baunilha, medem, pesam, analisam microscopicamente, cozinham, provam. Todos os dias, os mesmos ingredientes e novos processos para manipulá-los, com a aplicaçãodo rigor científico à cozinha. Através de processos físico-químicos, pode-se separar o alimento, componente por componente, extrair todas as suas propriedades nutricionais e formar um novo alimento, de forma sintética e econômica.
“Há muitos futuros possíveis”, diz o historiador Warren Belasco. “Temos nostalgia pela tradição, por isso não gostamos de produtos totalmente artificiais. Valorizamos muito o sabor e, mais que isso, os aspectos sociais da comida, que unem famílias e comunidades. Muitos que gostam desses cardápios supermodernos esquecem que comida tem a ver com algo transcendente”, afirma.
Estimular a cultura orgânica ou escolher o produtor que se conscientiza sobre mecanismos menos danosos ao ambiente. Privilegiar a produção local como a solução para não degradar o planeta. Uma espécie de fast-food orgânico (comida barata, disponível, ambientalmente responsável e boa para a saúde).
Percebemos que os caminhos que estão sendo tomados são vários e já podemos fazer nossas escolhas. A princípio, não se trata de se tornar um fanático por “comida saudável”, ou que passaremos a comer picanha e legumes em pílulas ou sintetizados. Tudo pode. Desde que o planeta agüente fornecer-nos esse banquete. Essencialmente e inicialmente, a mudança que deve existir é no jeito de escolher nossos alimentos. Cada ação individual reflete na totalidade e tem poder de mudar o mundo.
Se o início da história da gastronomia moderna foi marcado pela busca da essência das matérias-primas, que refletiam as questões da razão sobre “o essencial” e “o verdadeiro”, hoje devemos entender que os significados também nos alimentam. Ao escolher bem o que comer, estamos na verdade nutrindo o nosso corpo, alimentando nossa alma e refletindo ao mundo o nosso estado de espírito e personalidade.
Saber escolher é a nossa decisão!