Há muitos anos eu tive um paciente a quem me liguei intensamente…
Durante todas as internações e até a morte, ele falou quase nada, nem comigo nem com ninguém. Morava sozinho, e quando estava internado não recebia nenhuma visita na enfermaria. Constava da sua história que ele era solteiro; um dia me confidenciou que nunca tivera uma namorada. Mais: que nunca sequer dormira com uma mulher.
Tinha um câncer de cabeça e pescoço que lhe restringia cada vez mais a fala, a cada internação.
Um dia ele me pediu um jogo de dominó; comprei o mais bonito que achei; ele sorriu quando recebeu o presente, abriu a caixa… e jogou sozinho. Quando recebia alta ele deixava o jogo comigo, apenas para pedi-lo de volta na próxima e continuar, horas a fio, a jogar sozinho!
Uma manhã, naquele que seria o seu último dia de vida, entrei no seu quarto e ele, que já mal conseguia balbuciar (o câncer já lhe tinha invadido as cordas vocais), exclama com voz firme:
– Cuidado! Não vá machucar o cachorro…
É claro que o meu susto foi grande; de que cachorro ele falava? Onde estava este cachorro? Um cachorro, no décimo segundo andar de um enorme hospital e de normas tão rígidas?
Mas eu já me habituara às visões dos pacientes, e as respeitava muito; afinal, a maioria delas parece ajudá-los a fazerem uma “boa viagem”…
Parei bruscamente à porta do quarto, fiz uma grande volta (afinal, eu não sabia o tamanho do cachorro) e devo ter passado longe do animal porque o meu doente abriu um sorriso que parecia bonito, mesmo naquela face toda contorcida pela doença.
Sentei-me ao seu lado e, por muito tempo, “conversamos”, porque desta vez ele aceitou falar um pouco. A dificuldade de compreendê-lo era muito grande, mas nós conseguimos. Até hoje eu penso que ele teve muita paciência comigo e com a minha dificuldade em entendê-lo…
Ele me contou que na infância tivera um único amigo, um grande vira-lata que o adorava, até que desapareceu sem que ninguém da família se dispusesse a ajudá-lo a encontrar o cão; aliás, ele me diz que sempre achou que fora a mãe quem o enxotara…
Ele sofreu muito, quieto e sozinho como era o seu hábito, e nunca mais quis uma companhia, qualquer companhia…
Até aquela manhã vivera completamente sozinho, quando reencontrou o cão. Aliás, o cão é que o encontrara: viera buscá-lo para viajarem juntos, ele me disse.
De fato ele morreu horas depois, com um grande sorriso no rosto.
Até hoje eu agradeço a este cão, por não ter deixado o meu amigo sozinho…
Graça Mota Figueiredo