Em nosso país, também nós, cidadãos comuns, deveríamos lutar para obter um treinamento de como nos comportarmos em uma situação de extrema gravidade: quando nossos carros são confundidos com carros de bandidos e o que é pior, somos perseguidos como se bandidos fôssemos, à mercê de policiais truculentos, cheios de um perigoso poder.
Há pouco menos de um mês, minha prima vinha com o marido passeando felizes pelas nossas estradas do Sul de Minas quando foram surpreendidos por carros da polícia com sirenes, luzes e ordens em megafones, uma verdadeira operação de guerra. Assustados, deram passagem aos oficiais da lei para que prosseguissem em sua missão, pois deviam estar à procura de malfeitores. Qual não foi sua surpresa quando perceberam que os perseguidos eram eles. Quanto mais tentavam se comunicar com os policiais, mais difícil ficava a situação, com a ordem de não se moverem tendo várias armas apontadas para suas cabeças. Depois de expostos em situação humilhante e aterrorizadora, foram liberados com a explicação de que procuravam por fugitivos em carro parecido com o de meus primos. Não só não se desculparam, como saíram dizendo que a situação tende a piorar.
O hábito, de fato, não faz o monge, mas a vestimenta fala tão alto que pode convencer alguém de que é o que não é. Quero dizer que convém que um monge esteja vestido de hábito para que seja devidamente distinguido, entretanto se não for um monge, há o perigo de se sentir monge, pela arrebatadora embriaguês do hábito. Assim, presumo que a truculência da farda faça isso – o soldado é tomado por uma sensação de poder ilimitado em que acha que pode tudo, abusando do poder na função. Evidentemente que a importância do hábito do monge ou da farda do soldado está diretamente ligada à imagem recebida pelo outro. Se não houver o outro, que será do um?
Há um conto de Machado de Assis, “O espelho”, que ilustra com indubitável clareza a personificação do poder pela personagem quando veste a farda. Nomeado alferes da guarda nacional, Jacobina passa a ser o “Sr. Alferes”, precisando cada vez mais ser adulado com elogios e mimos. Quando não está vestido de alferes, o espelho lhe mostra apenas uma imagem difusa, fato que o leva a constatar que não se reconhece mais sem a farda, e ele desabafa: “… o alferes eliminou o homem … a única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia como exercício da patente… era exclusivamente alferes”.
Com efeito, chegamos à raiz do problema, o poder da vestimenta. De Jacobina a “seu Alferes”, depois “Sr. Alferes”, da vestimenta do homem comum à farda, a vaidade, o abuso de poder e a truculência. Humor à parte, comumente, policiais vestidos de farda, deixam-se investir de uma autoridade muitas vezes imprópria e truculenta, dando vazão a instintos cruéis que culminam em atos de selvageria e barbarismo. É o que temos visto nos noticiários e na vida diária. É possível que quando tirem a farda, não se reconheçam mais como pessoas, tal como aconteceu com Jacobina de Machado de Assis.