Falar de qualidade de morte sempre me leva a pensar em qualidade de vida. O tipo de morte da maioria das pessoas que eu acompanhei me pareceu ser conseqüência direta, no mais das vezes, da vida que levaram.
Uma vez eu tive o privilégio de permanecer o tempo todo com a família, enquanto a morte da minha doente se desenrolava.
A morte é um momento íntimo, sagrado e nós, profissionais, devemos saber o momento de deixar o doente e a família a sós. Ficamos à distância respeitosa de um chamado, mas aquele momento é particular e exclusivo.
Mas aquela família me convidou a ficar, e eu pude aceitar. Sorte minha!
A doente era solteira e fora uma Professora apaixonada por ensinar, como todos nós devíamos ser pelas nossas profissões! Fora uma tia muito querida para os cinco sobrinhos, uma irmã e uma cunhada muito especial, era o que se percebia pela atenção e o cuidado com que a cercavam.
Ela nunca estava sozinha; sempre alguém estava pelo quarto ensombrecido fazendo alguma coisa. Vi gente fazendo tricô silenciosamente ao seu lado, vi adolescente fazendo lição de escola aos seus pés, vi uma sobrinha com síndrome de Down enxugando cuidadosamente os seus lábios por onde às vezes escorria saliva, vi outra sobrinha com o filho pequeno dormindo nos braços e olhando a tia com tristeza…
Quando a morte ficou visivelmente iminente, a família um dia, um pouco constrangida, me perguntou se seria muito estranho fazer um jantar à volta da sua cama. E explicaram: esta tia era uma grande cozinheira e, sendo solteira, fazia com freqüência jantares memoráveis para a família; eles achavam, então, que jantar pela última vez com ela seria o maior ato de amor que poderiam lhe dar.
Nunca tinham me perguntado algo semelhante; mas porque não??? Famílias amorosas sabem exatamente o que fazer para que o doente morra bem, e assim ficam em paz depois que a morte acontece.
Não pude deixar de me lembrar de uma refeição antes da Morte, a Santa Ceia… O desejo da família me pareceu um desejo simbólico e sagrado de Comunhão…
E este jantar, dois ou três dias depois, aconteceu. Todos cozinharam: fizeram alguns dos pratos que a tia mais se orgulhava de fazer e o jantar transcorreu, regado ao vinho que ela mais gostava, em volta da cama… Riu-se muito, chorou-se muito, todos contavam histórias deliciosas da vida que tinham levado juntos.
Não sei se alguma outra vez estive presente a uma celebração mais solene! Fiquei pensando que a minha doente deveria estar muito orgulhosa da qualidade de vida que ela ajudara a construir, junto com a família.
Eu certamente estaria, no seu lugar.
E que estranha e maravilhosa mistura, esta, de dor e alegria…
Ela estava completamente silenciosa e calma para quem passara a tarde na agitação comum à proximidade da morte.
Quando ela enfim morreu, naquela madrugada, parecia sorrir!
Graça Mota Figueiredo é Professora Adjunta de Tanatologia e Cuidados Paliativos da Faculdade de Medicina de Itajubá – MG