Pilar conta de uma amiga sua que morreu prematuramente de um câncer. Na véspera de sua morte, Dulce saiu do hospital e foi para a casa. Em casa quis ir à cozinha e de lá mesmo mandou sua última mensagem aos amigos: “cheira a tomilho, talvez seja a vida.” Isso me fez relembrar meus primeiros dias de casada quando ao entrar em casa senti um forte cheiro de fritura e fiquei visivelmente aborrecida porque na época eu era uma pessoa diferente. Quando morava sozinha, nunca cozinhava em casa, e meu marido estava fritando bolinhos de bacalhau na minha cozinha imaculadamente limpa. Ao perceber meu aborrecimento, ele ficou decepcionado, e se não tivéssemos aprendido a nos perdoar cotidianamente, o começo do fim de nosso casamento teria acontecido ali. E a razão que teria feito o casamento fracassar? Bem, estaria escrito e carimbado no veredito: cheiro de gordura proveniente de bolinhos de bacalhau.
Por que relato isso? Prossigo: na época eu ainda tinha sessões de psicanálise em BH com um amigo que muito me ajudou nos mais variados conflitos humanos. Quando eu contei o episódio em questão, ele me interpelou: Como? Um marido que frita bolinhos de bacalhau? Jura que ele faz isso? E você ficou aborrecida com ele? Ora, tenha dó! Você tem um tesouro de marido. E solenemente acrescentou, fazendo uso de um vocativo: Maria Luiza: (ele não me chamava de Misa) você se tornou uma pessoa artificial, uma pessoa que só quer sentir cheiro de perfume francês nos shoppings com ar condicionado! É preciso sentir outros cheiros também, os cheiros da vida! Cheiros dos campos, dos pomares, do cocô de vaca, das flores, da Dama da Noite, dos temperos da cozinha. Cheiro de café é uma delícia e os de temperos de comida são ótimos. Uma casa deve cheirar a temperos para se tornar um lar. Ainda está em tempo de reaprender.
Reaprendi. Reaprendendo sempre. Mas depois que nos tornamos artificiais, o retorno tem que ser diário, um eterno retorno. A vida pulula ao nosso redor em movimentos magnificamente extraordinários, e na maioria das vezes não percebemos, deixamos escapar o encantamento. Estamos aborrecidos, preocupados, com dores aqui e ali, estresses, desânimos, calores e maus humores. Ainda há tempo. Vamos saborear bolinhos de bacalhau feitos em casa, com carinho. Isso é vida! E o contraditório da vidaé que para ser grandiosa sempre semostra simples. Aí nósdesconfiamos. Hann?, Então a vida é sentir cheiro de bolinho de bacalhau ou cheiro de tomilho?Mais ou menos isso. O simbólico é este mesmo, da natureza, das ervas, do azeite, do sal, da vida compartilhada nas cozinhas.
Pilar acrescenta uma observação muito bonita e verdadeira: “… se o mundo cheirasse a tomilho, vai ver que estaríamos em outra situação.”