Símbolo da vida, a água é tema de atuais discussões em todo o mundo. As fontes hídricas são abundantes, porém mal distribuídas na superfície do planeta. Em algumas áreas, as retiradas são bem maiores que a oferta, causando um desequilíbrio nos recursos hídricos disponíveis. Embora o Brasil seja o primeiro país em disponibilidade hídrica em rios do mundo, a poluição e o uso inadequado comprometem esse recurso em várias regiões do país. Esse impacto ambiental torna necessária a busca de tecnologias para o tratamento de diferentes efluentes, ou seja, produtos líquidos ou gasosos produzidos por indústrias ou resultante dos esgotos domésticos urbanos lançados no meio ambiente. “Buscar soluções para problemas relacionados ao tratamento e controle de poluentes em diversos tipos de efluentes é uma necessidade com caráter de urgência para assegurar que recursos hídricos de boa qualidade estejam disponíveis para as gerações futuras”, garante o pesquisador do Departamento de Química da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Leonardo Morais da Silva. Com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), Morais coordena um projeto inovador para o tratamento de água utilizando o ozônio, um insumo bem mais eficiente e ambientalmente correto do que o cloro.
O projeto começou em 2007 tendo como objetivo inicial tratar a água captada no Vale do Jequitinhonha. Como já existiam pesquisadores em Minas Gerais trabalhando com a qualidade da água nesta região, o grupo mudou o viés do projeto e decidiu desenvolver um equipamento para tratar água contaminada com produtos químicos, como remédios, pesticidas, agentes contraceptivos, corantes têxteis, e até produtos de beleza e higiene pessoal, considerados poluentes emergentes. “Quando se lava o rosto na pia para retirar um produto de beleza, por exemplo, os resíduos vão para o esgoto e não são eliminados na estação de tratamento. O mesmo acontece com os remédios que não são totalmente absorvidos pelo corpo, sendo excretados através da urina. Estes resíduos saem da estação do mesmo jeito que entram e podem ser altamente nocivos não só para os seres humanos, mas também para as plantas e animais”, alerta o pesquisador.
Por que usar o ozônio
A água oferecida à população é submetida a uma série de tratamentos para reduzir a concentração de poluentes até o ponto em que não representem riscos para a saúde. O tratamento dessa água tem como objetivo, principalmente, remover o material sólido, exterminar micro-organismos patogênicos e reduzir as substâncias químicas indesejáveis. Neste ciclo, uma das etapas mais importantes é a cloração, processo que visa eliminar germes nocivos à saúde e garantir a qualidade da água. O grande problema, segundo Morais, é que o cloro associado a resíduos orgânicos, como agrotóxicos, remédios e produtos de beleza, por exemplo, gera subprodutos nocivos. Estas substâncias contaminam a água e representam risco para os seres humanos, peixes, plantas e animais, que delas se alimentam. Um exemplo claro é a água de piscinas, que, aparentemente limpas, possuem matérias orgânicas como a urina. Essa matéria orgânica associada ao cloro gera subprodutos potencialmente nocivos. Quando essa água é jogada fora provavelmente contaminará rios e lagos próximos. “O cloro é utilizado simplesmente para retirar micro-organismos patogênicos e não para remover compostos orgânicos. Quando usamos o ozônio em substituição ao cloro não existe a possibilidade de gerar estes subprodutos nocivos. Embora a ozonização seja um processo um pouco mais caro que a cloração, é muito mais eficiente e ambientalmente correto”, esclarece.
Presente em pequenas concentrações na estratosfera (parte de atmosfera que abrange aproximadamente dos 15 até 50 quilômetros de altura), o ozônio (O3) é um gás à temperatura ambiente, instável, altamente reativo e oxidante. Na Europa, desde o século passado, esse gás, gerado a partir do ar, é utilizado para o tratamento de água. O caráter inovador do projeto em questão é a extração do ozônio a partir da própria água, que é um insumo mais barato. “O Brasil tem várias fontes de água ultrapuras que não precisam ser tratadas. O grande problema são as fontes contaminadas perto de centros urbanos. Por isso, podemos afirmar que a saúde da população melhoraria muito se a água fosse ozonizada. Mas, o país ainda é incipiente neste assunto e a indústria do cloro é muito forte”, problematiza.
Estudos comprovam que a maioria desses resíduos orgânicos podem ser considerados como potencialmente mutagênicos e/ou cancerígenos. Segundo Morais, uma pesquisa em Chicago, nos Estados Unidos, acompanhou um grupo de mulheres com câncer de colo de útero e demonstrou que 30% delas ingeriram água contendo matéria orgânica clorada. No Brasil, pesquisas apontam que esses compostos orgânicos, distribuídos em rios de algumas regiões do estado de São Paulo, estão causando mutações genéticas em animais, como é o caso da feminilização de peixes machos. “Esses contaminantes estão por aí nas águas naturais devido às atividades da sociedade moderna altamente industrializada, mas as pessoas fingem que não existem, pois tratá-los é complicado”, aponta.
Tecnologia alternativa
O protótipo desenvolvido foi projetado para tratar em torno de 10 a 25 mil litros de água por hora, utilizando 800 watts de energia, tendo como único insumo a água destilada (água pura sem sais). “A água destilada é colocada no reator, em seguida, aplicamos corrente elétrica. É um processo eletroquímico”, explica o coordenador. O ozônio gerado é aplicado diretamente na água que flui pelo reator, tornando possível a produção de água ultrapura para fins diversos. “Realizamos uma série de testes com o reator utilizando vários tipos de matéria orgânica, como agentes contraceptivos (excretados na urina), e agentes plastificantes (resíduos de produção do plástico). Os resultados foram excelentes”, relata.
A tecnologia comumente utilizada para ozonização da água na Europa é denominada Corona. Nesse processo um gás seco, ar ou oxigênio puro é submetido a uma descarga elétrica silenciosa. No entanto, a tecnologia eletroquímica é uma alternativa promissora para a geração de ozônio, pois possui algumas características que não são obtidas com o processo Corona, como é o caso da produção de água ultrapura em condição de circuito fechado (isolado da atmosfera). “Quando começamos o projeto fizemos uma pesquisa no exterior para saber em que tipo de indústria a ozonização está sendo utilizada. Percebemos que a técnica é essencial para a indústria farmacêutica e de semicondutores, já que necessitam utilizar água ultrapura no processo de produção e também na pesquisa de novas drogas e materiais. A água contendo pequenas quantidades de matéria orgânica pode atrapalhar todo o processo de reação química nesse tipo de indústria”, explica.
O grupo da UFVJM é o primeiro a trabalhar com essa tecnologia no país, que hoje, para utilizá-la, precisa importar. Recentemente, os pesquisadores fizeram o pedido de patente do protótipo ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) tendo a Fapemig como cotitular da invenção. “A intenção inicial é destiná-lo à indústria brasileira farmacêutica e de semicondutores além do uso na desinfecção de águas de piscinas e aplicações envolvendo a ozonioterapia. É um nicho de mercado economicamente viável e algumas empresas já se mostraram interessadas”, planeja.
Fonte: Agência Minas