Nada ainda mudou: a sensação de estar perdida e sem referência não se alterou nem um tiquinho.
É esperado, mesmo, que seja assim. O choque da perda (mesmo anunciada), as inúmeras exigências legais e burocráticas (como são detestáveis!), a necessidade de desmontar a casa da pessoa, tudo isso tem me mantido numa espécie de limbo, entre a dor e a surpresa.
Acontece ainda um fenômeno inesperado. Toda morte revive em nós as perdas passadas. Quando morreu a mamãe, morreram de novo o papai, o Marco Tullio, meu amigo-irmão Guilherme, meus pacientes a quem acompanhei até o fim, e por aí vai.
A sensação de incredulidade é grande. Quantas vezes eu me pego pensando que “tenho que contar prá mamãe”, dizendo que “quero levar esse doce pra mamãe”, ou falando pra alguém que “a mamãe vai ficar orgulhosa de mim”…
Uma sensação confortadora é usar objetos que pertenciam à pessoa. Nunca mais deixei de usar o relógio que o Marco adorava (presente de um paciente que não conheci). Estou usando duas bolsas que foram da mamãe, uma preta e uma marrom claro; troquei a bolsa branca de trabalho pela marrom, e juro que nunca tive uma bolsa de todo o dia, mais confortável.
Do papai tenho até hoje pendurado num cabide da entrada da sala de casa, um guarda-chuva dele. Era até uma piada na família e entre os amigos, o seu hábito de esquecer o guarda-chuva em qualquer lugar onde ele estivesse quando cessava a chuva. Mamãe tinha, então, sempre um de reserva para a próxima necessidade, pendurado em casa. Eu mantenho a tradição até hoje, e aposto que ele se diverte com isso.
Do Marco Tullio tenho alguns dos bonés que ele mais usava, nesse mesmo cabide do guarda-chuva. Depois que ele morreu, um grande e querido amigo que também usa bonés como ele, levou os que queria. Os outros ainda esperam por ele em casa.
Eu me sinto muito bem, rodeada dos objetos e das lembranças dos meus queridos. Parece até que não fiquei tão sozinha no mundo dos objetos.
Porque no mundo do espírito, estou sempre acompanhada pelo amor e o cuidado deles…