Como vimos no artigo anterior, uma obra de arte para ser devidamente apreciada precisa de nosso esforço: o esforço de obter um conjunto mínimo de informações que a enriqueçam e nos permitam enxergá-la por ângulos diversos, relacionando-as mais plenamente à cultura que a produziu.
No entanto, é muito comum que as pessoas simplesmente apontem o que ‘gostam’ ou ‘não gostam’ e, a partir disso, aceitem ou rejeitem um objeto artístico. Acolhem o que ‘acham bonito’ – uma natureza-morta ou aquela paisagem que evoca sua terra, por exemplo -, e tendem a rejeitar as obras que ‘não compreendem’. Neste último pacote está incluída quase toda a produção da arte desde o final do século XIX, todo o século XX e a arte nossa contemporânea, sobretudo a abstrata.
É preciso, primeiramente, que nos aproximemos das obras de arte sem fazer julgamentos de valor e, sobretudo, evitando os preconceitos que prejudiquem sua fruição. É novamente o historiador e crítico Jorge Coli que vem ao nosso socorro quando explica o porquê dessa tendência a simplificar e reduzir o julgamento do objeto de arte ao “gosto” ou “não gosto”, ou seja, à mera ‘opinião’. Para o historiador, quando fazemos esse tipo de julgamento, estamos apenas reagindo, com os instrumentos que possuímos, gerados pela nossa cultura, a um objeto que está fora do complexo cultural a que pertencemosi. Por isso não ‘entendemos’. Porque o objeto está intimamente ligado ao contexto cultural que o criou.
E não é que não possamos gostar; podemos, e isso é até inevitável. O que não podemos fazer é simplificar nossa postura diante do objeto, reduzindo-o apenas a isso. O “gosto” ou “não gosto” não é sequer um julgamento de valor: é a submissão do objeto a um dado meu, subjetivo portanto.
Os principais dados da apreciação estética que normalmente são submetidos a critérios subjetivos de julgamento e, por isso, são os determinantes de um veredicto final preconceituoso sobre a obra são, segundo meu entendimento, basicamente três: a beleza da imagem, a sua carga expressiva e o seu grau de verossimilhança.
Comecemos então por uma das questões mais polêmicas no que diz respeito à apreciação de um objeto artístico: a beleza.
O senso comum tende a rotular como ‘arte’ o que é considerado ‘belo’. Mas o ‘belo’ é uma questão filosófica complexa (tão complexa quanto à da própria definição de ‘arte’) que acaba permanecendo no terreno da apreciação subjetiva. Além disso, esse é um conceito que também depende de padrões dinâmicos, que variam no tempo e no espaço. Deste modo, o que é belo para mim pode não ser belo para meu vizinho, o que é belo para um oriental pode não ser belo para o ocidental, o que era belo no século XVIII hoje pode não ser mais.
Um exemplo apenas: duas pinturas de artistas que viveram contemporaneamente. Duas meninas. Uma pintura de um artista consagrado pelo século XX, o holandês Vincent van Gogh [fig.1 e 2: La mousmé] e outra, do francês Adolphe Bouguereau [fig.3: La tricoteuse]. Se eu perguntar qual dessas crianças é a mais bonita, mais agradável de se olhar, certamente a grande maioria das pessoas irá responder que é a de Bouguereau.
Estamos confrontando a beleza adocicada das figuras de Bouguereau, que é um artista extremamente atraente justamente por isso, com a figura vigorosa de Van Gogh, mas de menor capacidade de arrebatamento imediato. Prefere-se a imagem ‘agradável’, a criança perfeita, um tipo fácil de se gostar, dona de delicadeza e meiguice muito evidentes. Aparentemente, o oposto da criança de Van Gogh.
Em Bouguereau não há tensões. Tudo é suavidade e doçura. É uma imagem de leitura e aceitação muito fáceis. Não há nada para chocar aqui. A imagem tende antes à sedução da temática que tangencia a pieguice. Mas a ‘beleza’ de Bouguereau encontra-se também em sua forma e técnica: é um artista de grande domínio dos recursos pictóricos, capaz de interpretar com uma exatidão deliciosa a realidade do mundo: pele, cabelos, tecidos, as matérias todas são bastante convincentes em suas texturas, cores e brilhos. É um representante da pintura produzida pela Academia (dita pejorativamente “acadêmica”) que será longamente rechaçado pela crítica. Como resultado, suas obras permaneceram esquecidas nas reservas os museus por quase um século. Artista que sofreu com a mudança do gosto estético, Bouguereau vem sendo lentamente recuperado.
Bouguereau e Van Gogh trabalharam com poucos anos de diferença. O primeiro, mestre da Academia, enriqueceu, enquanto o segundo, inteiramente rejeitado pela critica sua contemporânea, morreu na maior miséria imaginável.
A pintura de Van Gogh tem características que podemos arrolar através do percurso geográfico do pintor num período muito curto, de cinco anos apenas, mas que compreende toda a sua trajetória artística. Holandês de origem, filho de um pastor protestante, é considerado um desajustado que só traz problemas à sua família. Tenta a carreira no comércio de arte; vai para Haia, depois para Londres, mas fracassa. A seguir, estuda teologia e quer tornar-se pastor, como pai. Fracassa novamente. Aos 27 anos de idade, sem rumo, é que começa a pensar em pintura, mas somente aos 32 segue para Antuérpia, onde freqüenta os cursos da Academia de arte. Sempre descendo no mapa, deixa Antuérpia por Paris, onde conhece os impressionistas, criadores de uma pintura revolucionária e que trazem grande contribuição ao seu pensamento sobre a arte. Sua pintura então vai se tornando mais clara e luminosa, as cores aparecem mais e mais vibrantes e, daí pra frente, só vão ganhar intensidade. Trabalha incessantemente e vive, não raro, em estado de penúria, sustentado pelo irmão, Théo. Em 1888, está no sul da França, na cidade provençal de Arles, onde pinta várias das suas obras mais conhecidas. Sofre colapsos nervosos e acaba internado, em 1889, em Saint-Rémy, mantendo-se, porém, bastante ativo. E finalmente, em 1890, está em Auvers-sur-Oise, sob os cuidados de um psiquiatra. É ali que morre, após disparar um tiro no peito. Sua trajetória artística oficial pode então ser resumida a cinco anos de atividade febril.
Este retrato Van Gogh pinta no verão de 1888, em Arles, região já muito iluminada pelo clima e pelo sol mediterrâneos. É precisamente nesse cenário que a cor explode em suas pinturas. Aqui ele retrata uma adolescente, e escreve ao irmão Théo contando sobre a telaii: explica que uma Mousmé é uma menina japonesa entre 12 e 14 anos de idade – e acentua que, neste caso, é uma menina provençal -, referência dada pela leitura de Madame Chrysanthème, livro de Loti. O retrato de gente simples, de gente de seu ambiente, é um dos temas que mais atrai Van Gogh desde seu início na pintura, ainda na Holanda [fig.4]. No entanto, aqui ele toma coragem e emprega cores vibrantes, já bem distante dos meios-tons que imperavam na época holandesa. Evoca ainda as gravuras japonesas no enquadramento da figura e recorre aos padrões decorativos, que animam, por exemplo, a saia e o corpete da menina: bolinhas e listras em efeito ornamental. Mas não é só: ele consegue captar e transmitir o intangível, o estado de espírito da menina, que fala por seu olhar tímido e meio nervoso, por seu corpo pequeno sobrando dentro da enorme cadeira. Sua delicadeza e fragilidade nos aparecem então; surgem desse contraste, muito menos evidenciadas do que em Bouguereau, mas inegáveis.
Nada há aqui da interpretação naturalista do mundo, no sentido de representar em pintura as coisas como elas se mostram aos nossos olhos. Van Gogh escreve a Théo que “em vez de pintar com exatidão o que eu tenho diante dos olhos, sirvo-me arbitrariamente da cor para exprimir-me com intensidade.” Depois, falando do retrato de um amigo que estava pintando: “pra começar, desenharia tal e qual, tão fielmente como pudesse. Mas o retrato não estaria terminado. Para o concluir, serei agora um colorista arbitrário…” E termina dizendo que “as pessoas sensatas verão nesses exageros apenas caricatura”.
Para Van Gogh não interessa interpretar a realidade objetiva do mundo e nem traduzir através das formas e cores as ‘sensações’ da realidade material, de volume, de distância, de luz sobre os objetos, como desejam os impressionistas. Ele quer, com formas e cores,expressar sentimentos, reações afetivas, valores simbólicos. A realidade objetiva não basta, não é completa, não é tudo. Quer pintar as coisascomo as sente, e não como as vê.Quando ele modifica a realidade objetiva através do desenho e da cor, quando a deforma, é para melhor comunicar seus sentimentos ao espectador. Diz que com o vermelho e o verde desejaexprimiras mais terríveis paixões humanas. E essa intensidade dos seus sentimentos revela-se não apenas nas deformações de cor e desenho, mas no próprio modo nervoso de pincelar, que parece carregar toda a sua angústia: riscos, pontos, gotas, vírgulas, tudo é rapidez e vibração.
Desse confronto, eu gostaria que se entendesse que a beleza como critério exclusivo para o julgamento de uma obra de arte é uma armadilha. Se nos limitássemos a criticar a mão da “Mousmé”, quase informe (poderíamos dizer até ‘grosseira’), feita de manchas de cor, deixaríamos escapar sua mensagem, que, idêntica à da “tricoteuse” de Bouguereau, só se revela a quem quiser olhar duas vezes.