Duas cenas de vitrine.
Observem-nas antes de começar a ler este texto.
A primeira, em preto e branco [fig.1], é de autoria do francês Robert Doisneau (1912-1994), sobre quem falamos no artigo anterior. A segunda, em cores [fig.2], é obra do norte-americano Richard Estes (1932-).
A primeira, intitulada “Angels and leeks” (algo como “Anjos e alho-poró”) é uma fotografia datada de 1953. A segunda, inacreditavelmente, é uma pintura a óleo sobre tela: “Central Savings”, de 1975 (Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City).
Já falamos de como Doisneau – o “pescador de imagens” – se misturava à gente da cidade, se postava num determinado ponto e ficava horas, se necessário, aguardando que se apresentasse a oportunidade para o enquadramento que lhe traria a composição desejada. A pesca não é outra coisa senão uma mistura de paciência e acaso. Não se sabe exatamente o que vai ser pescado, nem quando.
Pois Doisneau nos mostra agora uma cena de feira diante de uma vitrine de vestidos de noiva. No primeiro plano, sobre uma calçada, três feirantes trabalham, ajeitando os caixotes enviesados repletos de verduras e legumes que compõem sua mercadoria. Mercadoria terrena: raízes e folhas nascidas do chão para suprir a necessidade mais primária do homem, condição de sua sobrevivência, que é a de se alimentar.
Ao fundo, dois manequins em vestidos de noiva criam o contraste supremo. Descem escadas, como se flutuassem, esvoaçando seus panos leves e brancos. Tudo é suavidade. Alguns reflexos da cidade no vidro apagam os pés, enevoam o ambiente que não conseguimos ler com clareza. Emoldurando os manequins, duas colunas-estátuas com asas de luz erguem os braços, apontando para o alto. São os anjos do título. Mas anjos são também, certamente, as figuras de branco que descem as escadas como as figuras do sonho de Jacó. Descem do céu.
Doisneau, portanto, cria uma cena cheia de sutilezas e de contraposições muito sugestivas nessa oposição terreno x celestial.
A pintura de Richard Estes, por sua vez, mostra, em relação à fotografia de Doisneau, um trabalho que nos permite diversas contraposições. É um trabalho da lentidão esse que copia, pincelada a pincelada, uma realidade fotográfica em todos os seus detalhes. Hiper-realismo é a corrente que, em pleno século XX, partindo de uma fotografia, copia a natureza na pintura tão perfeitamente que chega a enganar o observador, a ponto de não sabermos se o que temos diante dos olhos é uma fotografia ou uma pintura. Arte da paciência e do virtuosismo do pincel.
As pinturas de Estes são freqüentemente intituladas a partir do local que figuram: um estabelecimento comercial, uma rua, uma praça. As pessoas não aparecem senão em reflexos; e ele brinca com os reflexos de vitrines o tempo todo. Cria uma verdadeira rede óptica, complexa. Constrói a imagem. Nesse ponto, ele difere dos outros hiper-realistas, que sempre trabalham a partir de uma única imagem, tentando chegar ao mesmo grau de visualidade da fotografia que têm como modelo.
Richard Estes, em vez disso, trabalha a partir de várias fotos, estudando as diferenças de luz nas superfícies e reorganizando-as para formar uma composição. Ele, de fato, recompõe a cena, não se prendendo exatamente à realidade. Assim, pode-se dizer que ele trabalha como qualquer pintor: selecionando, escolhendo, pesando e equilibrando massas de cor, luz, sombra e volume. Isso é particularmente notável nos reflexos de vitrines e espelhos, quando ele duplica os espaços que nem sempre são tão claramente duplicados na realidade. Contudo, isso não acrescenta nenhum significado especial às obras, que permanecem no vazio de uma pura experiência visual.
Quando comparamos os dois métodos e seus respectivos resultados, vemos que, quando o artista teria mais meios de manipular a realidade pela criação-falsificação – isto é, na pintura -, ele opta pela representação apenas do mundo visível, opta por uma limitação de seu significado.
O fotógrafo, a seu turno, com uma cena ‘real’, faz algo que é exatamente o oposto: num instantâneo, momento fugidio, ele capta uma cena que, pelo enquadramento, abre um leque de possibilidades de interpretação. Enquanto R. Estes transporta a um suporte bidimensional o conteúdo prosaico da descrição, Doisneau permite a recriação do mundo sensível por meio da sugestão de outros significados; pescador de poesia.