Quando o escritor Roland Barthes, com suas próprias palavras, ousou falar em uma nova idade que atravessamos, a idade de desaprender, de deixar o esquecimento se impor para que os saberes sejam sedimentados (palavras dele), ele sabia do que estava falando e deu um nome: “Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”. Assim, o título deste artigo também poderia ser: menos saber e mais sabor.
É verdade. Ao longo da vida, vamos acumulando experiências, conceitos e saberes que vão se sedimentando paulatinamente e sem que percebamos, formamos uma identidade automatizada que, talvez precise ser reformulada, afinal, será ela nossa, de fato, ou de outros que nos legaram? Acresce-se a isso, o fato de vivermos em uma era de intensas mudanças tecnológicas, de extrema urgência de informações e conhecimentos que acabam por nos afastar de ver realmente o que está por detrás do aparente. Estamos tão saturados que nem sentimos mais o gosto de nada. Talvez seja hora de recuperar nossos sentidos já esfolados de tanto ver e ouvir. Experiência do sentir, que tal?
Sentir o quê? A vida, o mundo, é claro! A tecnologia é boa, sem dúvida alguma, nem seria mais possível viver sem ela, porém é massacrante quando nos rouba a capacidade de concentração, quando não conseguimos mais controlar o que vemos na TV e na Net, quando tentamos apreender um pouco de tudo e parece que tudo fica na superfície. Nada mais deplorável do que tornar-se um consumidor passivo de informações, sem exercitar o espírito crítico. O tempo fica escasso para ler e saber tanta coisa e quanta coisa inútil! Que tal deixar a Net por alguns dias e ler um clássico sem pressa, que tal esquecer por algum tempo a derrocada do euro e fazer um jantar com a gentileza de quem faz uma obra de arte? Que tal deixar a esteira na academia e fazer uma caminhada real? Ficar de bem com a natureza.
Chegar a essa experiência de percepção genuína de sentir o mundo, conseguiram os escritores e poetas que compreenderam a necessidade de se refazer, de se libertar do que foi ensinado. Mas se não conseguimos fazer poemas como eles, podemos seguir seu conselho. Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) dizia: “procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram” e ainda: “desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a Natureza produziu”. Que tal desembrulhar-se? Ir tirando as camadas de informações superficiais e preconceitos inúteis de décadas até encontrar-se com o eu original, o que pode amar e se alegrar com suas emoções verdadeiras.
No conto “Amor”, Clarice Lispector concedeu à personagem Ana a experiência de olhar as coisas de um novo modo. Confrontada pela existência de um cego em um ponto de ônibus, Ana, impelida pela necessidade de “sentir” a vida de forma mais intensa e verdadeira, foi tomada por uma angústia dolorosa, porém necessária, que a fez enxergar o mundo como ele é. A experiência da personagem não foi fácil. Literalmente, os ovos que ela carregava em sua sacola de compras, quebraram-se todos, confirmando a máxima de que não se faz omelete sem quebrar os ovos, ou dizendo de outro modo, ninguém cresce sem sofrer e aprender a refletir. A cegueira do homem abriu os olhos de Ana tal como numa epifania e a libertou de sua inconsciência, talvez mais dolorosa do que sua própria angústia. A crise inevitável a fez sofrer, mas também lhe proporcionou sentir um prazer intenso de olhar as coisas de um jeito novo e diferente, de sentir uma bondade universal extremamente benéfica.
Após instigante revelação, Ana nunca mais foi a mesma e, certamente, nenhum de nós será, renovados por um processo de despojamento total. Libertos da velha imagem viciada pela influência de outros, pelos traços atávicos e preconceitos arraigados, libertos da cobrança pela informação urgente e excessiva que contamina e seduz, aprenderemos a sentir e a amar. Sim, urge fazer o caminho de volta, uma nova experiência, como diz Roland Barthes, a de desaprender o que já sabemos e reaprender quem somos, voltar às origens, enfrentar as revelações que se oferecem a cada dia, a cada momento. Importa aceitar com coragem o cotidiano que esconde a grande sabedoria das coisas simples. De posse do “novo sentir”, aí sim, poderemos mergulhar no sofrimento benfazejo que nos enriquece, nos renova e nos permite existir autenticamente no mundo caótico e belo que nos rodeia e no qual estamos irremediavelmente inseridos.