Meus pais me deixavam com ela para irem ao cinema ou ao teatro e recomendavam que ela não me tirasse da cama. Ela esperava que o carro se distanciasse e me libertava de um sono que não viria tão cedo. Quando ela ouvia os dois chegando, me colocava outra vez na cama e me recomendava que não abrisse os olhos.
Esse foi o nosso segredo durante toda a minha vida. Nunca disse isso aos meus pais.
Ela tinha duas outras filhas além do meu pai. Há anos ela passava 4 meses por ano na casa do filho e das filhas. Minha mãe e ela se davam tão bem, que lembro-me que vovó se referia a ela como “minha filha querida”.
Pois bem: uma noite eu acordei, no meu quarto, com ela sentada à beira da minha cama.
Nenhuma estranheza nisso: ela poderia ter chegado para a temporada em casa sem que eu soubesse, embora isso nunca tivesse acontecido antes.
Lembrem-se que eu tinha 5 anos apenas, e nada me parecia impossível nessa idade. Mesmo que fosse noite e meus pais estivessem dormindo, ainda assim me parecia muito possível que vovó tivesse chegado.
Conversamos durante muito tempo, como sempre, e em algum momento vovó foi embora. Meu rosto guarda até hoje a memória do toque dela ao se despedir.
Na manhã seguinte, bem cedo, meus pais me acordaram com a primeira notícia triste da minha vida: vovó morrera calmamente durante a noite, na casa de uma das minhas tias.
Dizem que ela tinha um sorriso no rosto quando minha tia a encontrou.
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiana, Professora de Tanatologia e Cuidados Paliativos na FMIt, co-autora e co-tradutora de livros na área de Tanatologia e Cuidados Paliativos. Veja sua coluna“Do Divino que há em nós”.