Seja qual for o prato, o confronto entre a idéia de cada um sobre ele e o que foi efetivamente executado, forma o juízo: cozinha bem ou não e, quase todos acreditam que a RECEITA é o lugar onde se dá esse encontro.
Daí ser considerado um elogio quando pedimos a receita aquele que a executou.
Devemos, portanto, partir do princípio que o ato de cozinhar não se resume ao ato de executar uma receita e é sobre isso que iremos falar hoje.
Na Idade Média, a culinária das elites tinha um papel fundamental no equilíbrio entre os humores (fluidos que circulavam pelo corpo), e era um terreno a ser percorrido conjuntamente pelo médico e pelo cozinheiro. A manutenção da saúde (dada pelo equilíbrio desses humores) era igualmente de responsabilidade da cozinha, que seguia as orientações médicas. Não por acaso, a palavra receita é de uso corrente em ambas as profissões.
Ingredientes como açúcar, gengibre, canela, cravo entravam em quase todas as preparações para equilibrar os outros ingredientes (carnes e legumes), com os organismos de quem ia comer, que eram tomados em suas diferenças individuais. Dessa forma, nem todas as receitas serviam para todas as pessoas.
Escoffier, que sistematizou a gastronomia francesa no início do século XX com seu livro de “cinco mil fórmulas” foi o principal responsável pela idéia de que uma receita é uma fórmula a ser seguida e o máximo que hoje podemos dizer é que isso talvez corresponda apenas ao domínio específico da pâtisserie, onde, se não pesarmos corretamente os ingredientes, controlarmos o tempo e a temperatura, poderemos não chegar a um resultado satisfatório.
O brilhante trabalho de Escoffier globalizou as preparações, impulsionando principalmente as cozinhas da hotelaria, mas ao resumir em 5 mil receitas toda a gastronomia francesa, esqueceu-se de que elas são compiladas em um repertório infinito, o da intuição humana.
A gastronomia moderna hoje entende que muita coisa se pode fazer considerando apenas as proporções grosseiras entre os ingredientes, usando a sensibilidade e as preferências de cada um para dosar as matérias-primas.
Fernand Point, grande cozinheiro que inspirou os Chefs da Nouvelle Cuisine entendia a receita não como uma fórmula, mas como uma proporção entre ingredientes e cada cozinheiro deveria detalhar essa proporção segundo sua própria interpretação do que é melhor.
Por esse ponto de vista, ele concluiu que ir ao mercado e escolher matéria prima de qualidade torna-se a melhor garantia de uma boa receita, mesmo que se erre nas proporções.
Até mesmo Escoffier pode ser surpreendido na imprecisão das fórmulas quando apresenta duas delas para o molho bechamel: uma que ele considera rápida e outra “profissional”. Nenhuma delas, escritas no início do século XX, se assemelha ao que hoje é compreendido por bechamel ou molho branco na maioria dos restaurantes, escolas de gastronomia e lares brasileiros. E mesmo o bechamel de Escoffier já era uma correção do que havia se tornado o bechamel desde Carême.
É preciso, portanto, conhecer também a história de determinadas receitas que pode ser tão ou mais importante do que as próprias proporções.
Assim, é extremamente importante que levemos em consideração todas as nossas experiências organolépticas desde a infância, a intimidade culinária dentro de casa com nossas mães e avós e, se desejar se aproximar cada vez mais desse universo, procurar entender sua íntima relação com a história e a cultura de um povo. O exercício do saber culinário se alimenta, portanto das mais variadas informações.
Executar uma receita é debruçar-se sobre uma idéia do que seja a preparação, tomando-a como referência e experimentando a melhor maneira de realizá-la. Sob essa ótica, diante de certos desafios originais, todos, profissionais ou amadores, terão as mesmas dificuldades para chegar a bons resultados.
Filosoficamente falando, se não tivermos paciência e persistência, se não estivermos abertos ao constante aprendizado, se não admitimos nossas imperfeições, melhor não nos aproximar da cozinha, pois nenhuma receita poderá nos salvar.
Referências Bibliográficas
Atala, Alex e Dória, Carlos Alberto. Com Unhas, Dentes & Cuca – Editora Senac São Paulo – 2008