Tenho vergonha de contar que assisto, de vez em quando, aos “Largados e Pelados”. Assisto, assisto sim. Fico envolvida para acompanhar até quando o casal vai se desentender, se vão achar água rapidamente ou só no dia seguinte, se vão conseguir acender o fogo ou não. Sorrio quando vejo no início a segurança de todo participante, dizendo que é socorrista, guarda de floresta, guia de escaladas, instrutor de técnicas de sobrevivência, que já combateu no Iraque e tal e tal. O fato é que a coisa não é fácil na floresta. Nem um pouco, até para os mais experientes. Rapidinho eles ficam ofegantes e angustiados.
Bom, todo mundo tem o direito e a necessidade de assistir a uma bobeira de vez em quando para se desligar um pouco do mundo cruel e caótico atual que nos entristece e amedronta. Um pouco de tudo faz bem. Eu me distraio com isso, dá licença. Depois enjoo. Daí a uma semana assisto mais outro episódio, se não for repetido.
Acho o maior absurdo alguém deixar o lugar onde mora para tirar a roupa e tentar sobreviver por vinte e um dias num lugar muito quente ou muito frio, com animais ferozes, cobras, escorpiões, mosquitos horrorosos, etc. Cada um, cada um. Eu jamais.
Fico alegre quando conseguem a água e o fogo, sobretudo gosto de assistir à emoção do final quando as duas pessoas finalmente se ajudam, ignorando as antipatias iniciais, as grosserias que podem surgir e surgem, e ao final se abraçam em lágrimas, uma reconhecendo o valor da outra, exercitando a cooperação, a colaboração. Isso aí acho válido. Mas nem sempre termina assim. Muitas pessoas não aguentam e saem do programa antes do previsto, seja pelas dificuldades de fome, frio, como pelos desentendimentos ou por tudo junto. Conviver é uma arte e um desafio.
Todos nós temos nossos defeitos e pontos fracos, somos ou egocêntricos, ou individualistas, ou intolerantes, ou casquinhas de ferida. Todos também temos virtudes, enfim, temos nossas boas e más inclinações, porém, lembrando que nossas inclinações pendem mais para o mal do que para o bem. É da nossa humanidade.
Além dos defeitos, também já sabemos que cada pessoa tem seu temperamento. Há os sanguíneos, os melancólicos, os coléricos e variações de cada categoria. Os casais têm que passar pela experiência do cotidiano, não há outro caminho, não há mágica, tem que ser no dia a dia mesmo. Se no mundo real, quem convive na mesma casa há anos se desentende e se estranha, imagina um que um nunca viu a cara do outro, largado, pelado e zangado por vinte e um dias! Tiro o chapéu para quem chega ao final.
Do jeito que caminha a humanidade neste individualismo exacerbado, não há bons prognósticos para o futuro. Se não aprendermos a conviver em paz, respeitando e reconhecendo o valor das outras pessoas, a necessidade de ajudar o vizinho, seja de prédio, de casa, de rua, o mundo vai ruir, já está ruindo. Nada é fácil, a cooperação é imprescindível bem como a compreensão dos sentimentos alheios.
O filme “O mundo depois de nós” da Netflix ilustra bem isso. A princípio, seja nos Largados e Pelados, seja no mundo real, no triste futuro que se avizinha, repito, a princípio, vamos nos estranhar, depois vamos nos digladiar, depois, se tivermos maturidade, vamos tentar nos compreender uns aos outros, e finalmente vamos nos ajudar. Aí pode ser que dê certo. A lição para o futuro vai ser essa, a cooperação, a boa vontade, o respeito e o perdão, como sempre.
Misa Ferreira é autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia, Na casa de minha avó e Ópera da Galinhinha: Mariquinha quer cantar. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.