Se não fosse trágico, seria cômico. Numa tragédia dessas é bom sermos solidários, embora não sentimos na pele o que sentiram essas pessoas que jogaram, pagaram e não levaram. Cada um sabe onde lhe dói a ferida, mas o ofício da escrita é brincar com as palavras e não com os sentimentos.
Bom, então eu, que passei a vida trabalhando e sonhando, de repente, confiro o resultado da loteria e pulo de alegria, dou gargalhadas porque rico ri à toa mesmo, quero comemorar com caríssimas garrafas de champanhe Möet Chandon, sem medo de gastar, afinal, é preciso comemorar uma probabilidade mínima de ser feliz! Entro no supermercado me sentindo a dona do mundo, corro as prateleiras de bebidas, ali estão elas, as Möet Chandon! Bem dizem que para acontecer a gente tem que dizer e profetizar. Tanto eu disse que um dia compraria uma caixa de Möet Chandon, que aconteceu. Acaricio as garrafas com ternura, como se não nos víssemos há muitos anos e não mesmo! Encho meu carrinho com quinze champanhes, o rapaz foi buscar uma caixa no depósito porque aqui só vejo sete garrafas, também quem é que pode pagar tantas Möet Chandon? Eu, é claro!
Chamo os parentes, vizinhos, amigos, inimigos, hoje é dia de festa, ou melhor, noite de festa! Alguém traz o violão, logo começa o pagode. Enquanto as Möet Chandon não estão geladas, vamos tomando cerveja e comendo torresmo. Pronto, agora abrimos as Möet Chandon. O pipocar das rolhas lembra noite de Oscar e o borbulhar espumante me traz lágrimas aos olhos! Vou me lembrando de tudo que quero fazer com esse dinheiro, os pensamentos perpassam pela minha mente com uma velocidade magnífica! Farei uma grande viagem de navio, vou para Paris, comprarei muitos frascos de perfume francês, Calvin Klein, Azzaro, Lancome, Kenzo, Guivenchy, Dior, comprarei tapetes persas, quadros famosos, cristais Swarovski, porcelanas chinesas. Mas também irei para a Costa do Sauípe, para Porto de Galinhas, para o Rio de Janeiro, ficarei hospedada no Copacabana Palace, não, naquele outro mais moderno, como é mesmo o nome? Aquele que a Madonna ficou no carnaval. Vou para Fernando de Noronha, para as Serras Gaúchas. Andarei de gôndola em Veneza, vou assistir a uma tourada em Madrid, vou para Beverly Hills, ver a casa do Brad Pitt com a Angelina Jolie e talvez, quem sabe, ainda vou para a Ilha de Caras.
De repente, o telefone toca, é o colega do bolão me avisando que o jogo não valeu, não foi registrado o cartão. Recuso-me a acreditar, não é possível! Deve haver um modo retroativo de registrar. Não tem jeito, a tragédia está confirmada. Pelo amor de Deus! Dona Caixa, por favor, tenha dó! Quem cala consente, se o bolão a senhora não proibia é porque consentia, não é? Alguém faça alguma coisa, eu ganhei! Está aqui o cartão do bolão!
É isso aí, quem nasce plebeu nunca chega à majestade. Minha cabeça dói, meu estômago se contorce irritado de indignação, olho para as garrafas vazias de champanhe Möet Chandon que comprei com meu dinheiro de assalariada e que todos beberam, lembro-me do valor que paguei e o estômago se contorce mais ainda e a cabeça agora dá pontadas afiadas e vingativas. Por que não deixei para comemorar amanhã? O apressado come cru.
Tudo bem, vou para Campos do Jordão, vou e volto no mesmo dia, há uma casa de massas com um canelone que é uma delícia! Comprarei uma colônia do Boticário, mas não agora, só no mês que vem, ou daqui a dois meses, pois vou ter que cobrir o cheque das Möet Chandon, ah! As malditas Möet Chandon! Tudo bem! Como diria minha mãe, não há de ser nada, de hora em hora Deus melhora!