Justiça se faça
À nobre cachaça
No copo ou na taça
Bebida de raça
Há muitos anos atrás, passando pelo litoral paraibano, paramos em um bar e perguntamos ao senhor que nos atendeu se teria alguma cachaça. Qual não foi a nossa surpresa quando ele nos trouxe, com muito orgulho, em bandeja com guardanapo, a cachaça em um cálice liso, de boca larga, acompanhada por uma azeitona que mergulhava satisfeita na bebida. Décadas depois, em Itajubá, Minas Gerais, estado que produz cachaça em quase todos os seus municípios, procuramos a aguardente no cardápio de certo restaurante e não a encontramos, porém lá constavam uísque, rum, vodka e outros produtos estrangeiros. Insistimos na cachaça que nos foi servida quase escondida, como se fosse uma bebida indecorosa e proibida. Após algumas indagações, ouvimos dos proprietários que cachaça é bebida de boteco e não de restaurante sério. Eles apenas expressaram o que culturalmente já estava solidificado, repetindo um discurso histórico que tomam como seu e como certo, no entanto, isso vem pela história, pela memória, são palavras que tiveram seu significado num passado tão distante e tão antigo quanto a própria cachaça. O preconceito foi gerado pelo fato da bebida ter sido muito consumida pelos escravos nos engenhos, ao contrário dos finos licores servidos em ricas residências. Felizmente, chegamos ao tempo da criatividade que implica romper com as regras ideológicas e abrir novas possibilidades ao diferente e ao que é nosso.
A cachaça ocupa um lugar de capital importância em nossa história, pois se tornou um símbolo de resistência, tendo sido, talvez, segundo estudos, o primeiro movimento de união nacional contra o domínio português, pelo aumento abusivo do imposto sobre a caninha naquela época, episódio que foi chamado de “Revolta da cachaça”.
E não é que essa purinha, pinga, aguardente, caninha ou cachaça é um produto genuinamente brasileiro e deveria ser nosso orgulho nacional? A duras penas, a cachaça tem se mostrado vitoriosa em uma batalha desigual de séculos, porque lutar contra a elite não é para qualquer um não. Confinada nas senzalas e proibida pela Corte de sair na companhia do vinho do Porto, corajosa e destemida, ela não se vergou. Ficou, sim, do lado de fora dos elegantes salões de baile, assistindo, modesta e digna, ao desfile de licores, conhaques e uísques que eram acolhidos como convidados de honra, enquanto ela, filha legítima, ajudava os escravos a suportar a água gelada dos rios mineiros para procurar o ouro, sob a mira das espingardas dos capatazes.
Mas a história muda. Após séculos de discriminação, a valente cachaça tem conseguido derrubar o preconceito e conquistar seu merecido lugar na sociedade que não mais a tem visto como uma bebida bagaceira, mas uma sofisticada e nobre destilada, filha da terra. A cada dia, o mercado da cachaça cresce e já é moda curtir a pinga, defendida por artistas e intelectuais do país que a louvam em músicas e poesias. Imagine, até já foi tema da Imperatriz Leopoldinense. Resta ainda convencer alguns poucos arraigados preconceituosos para que abram as portas de seus restaurantes e assumam com orgulho aquilo que é bom e é do nosso Brasil. Viva a cachaça!