A historiadora portuguesa Isabel Mendes Drumond Braga lançou no Brasil recentemente o livro SABORES DO BRASIL EM PORTUGAL, no qual, em uma abordagem cuidadosa, trata da complexidade inerente a forma como culturas diversas se entrelaçam e como a cozinha é o território mais representativo dessa transição.
O colonizador ao descobrir novas fontes de cultura, invariavelmente, também é descoberto; e ao decidir se alimentar dessa cultura é igualmente consumido. Como o ato de comer é um ato de cultura, os navegadores ao chegarem no Novo Mundo empreenderam, a despeito de suas reais intenções, a maior revolução cultural que a Europa pôde testemunhar, inserindo novos ingredientes em sua dieta.
Uma carta do Pe. Rui Pereira, presente em uma das expedições portuguesas, descreve bem as primeiras impressões do início dessas transformações:
“(…) se houvesse paraíso na Terra, eu diria que agora o havia no Brasil (…) saúde não há mais no mundo; ares frescos, terra alegre, não se viu outra; os mantimentos eu os tenho por melhores, ao menos para mim que os de lá e de verdade que nenhuma lembrança tenho deles para os desejar. Se tem em Portugal galinhas, cá há muitas e mui baratas; se tem carneiros, cá há tantos animais que caçam nos matos, e de tão boa carne, que me rio muito de Portugal em essa parte. Se tem vinho, há tantas águas que a olhos vistos me acho melhor com elas que com os vinhos de lá; se tem pão, cá o tive eu por vezes e fresco, e comia antes do mantimento da terra que dele, e está claro ser mais sã a farinha da terra que o pão de lá; pois as frutas, coma quem quiser as de lá, das quais cá temos muitas, que eu com as de cá me quero. E além disto há cá coisas em tanta abundância que, além de se darem em todo o ano, dão-se tão facilmente e sem as plantarem que não há pobre que não seja farto com mui pouco trabalho.”
Como diz a historiadora, não é apenas o consumo que está envolvido no comer, mas todos os valores culturais atribuídos a determinado alimento. A identidade cultural passa a estar em jogo e através dela passa-se a rejeitar, aceitar ou transformar determinado alimento a mesa:
“As rejeições, as adaptações e as transformações dos alimentos são mais do que meras questões de gosto ou de capricho, representam a essência do valor que é dado aos diferentes bens e conduzem a questões de identidade.”
Os índios brasileiros, apesar das diferenças entre as tribos, tinham como alimentos básicos a mandioca, o peixe, a carne, os insetos e as frutas, consumidas ao natural ou dissolvendo as em água, transformando o produto nos chamados vinhos. Além disso, destacam-se o milho, a batata-doce, o cará, o feijão e a abóbora. Em algumas regiões do norte do Brasil ressalta-se também o cacau.
Eles se alimentavam de forma semelhante, aproveitando as possibilidades das terras, comiam em silêncio, sentados ou agachados no chão, não utilizavam nem sal nem açúcar e tornaram-se bastante permeáveis às novidades alimentares, quer européias ou africanas.
Inúmeros registros dessa época descrevem os hábitos alimentares da população nativa e neles se evidencia do desprezo à curiosidade pelos novos ingredientes e forma de preparação, bem como suas combinações.
Alguns séculos se passaram para se perceber a mútua influência entre as culturas ou para definitivamente assumir o fato, mas é interessante saber que foi a inexistência do trigo em quantidade que levou os missionários do século XVI a adotar a mandioca sem dificuldades, fazendo deste ingrediente o que mais caracterizaria a fusão entre esses mundos.
Muito além da curiosidade em saber como a cultura indígena se amalgamou à colonizadora e vice-versa, a partir da alimentação, esse assunto nos permite perceber os impactos que se dão ao conhecermos novos gêneros alimentícios e todas as mudanças que podemos gerar ao aceitá-los ou ao refutá-los. Nesses gestos aparentemente simples residem as ações que protagonizam a continuidade da transição cultural, cujo território é a nossa própria cozinha.
O consumo alimentar evidencia-se como um dos fatores mais relevantes da construção das identidades culturais. Nossas escolhas assim podem se basear também em tradições, mas, essencialmente, representam um retrato de nosso tempo.
FONTE: SABORES DO BRASIL EM PORTUGAL – BRAGA, Isabel Mendes