E se naquela noite que antecedeu a tragédia, cada funcionário da empresa, cada morador das imediações tivesse tido um sonho, desses sonhos proféticos que às vezes as pessoas têm? Aí o funcionário já tomando seu café com a família, interrompeu e telefonou para um colega: cara, sonhei que a barragem arrebentou e veio em cima de nós. E o outro: jura? Pois eu também. E assim em poucos minutos quase todos se falariam e decidiriam que não iriam trabalhar enquanto a barragem oferecesse perigo e também não trabalhariam mais se seu escritório estivesse na passagem da água. Uma dúvida pairou no ar, aquilo parecia loucura. Quem os ouviria? Os grandões lá de cima? Mas se todos haviam sonhado! Não iriam trabalhar. Pronto. Poderiam ser demitidos. Sabe o que é ficar desempregado? Só os que são é que sabem.
Ou quem sabe se depois do massacre de Mariana, houvesse alguém, algum chefe, diretor ou presidente da Vale que não vale um centavo que lucra, tivesse culhões e sob risco de ser morto por suas decisões, dissesse: chega! Que parem todas as barragens! Que ninguém mais morra por causa do descaso da Vale. Vamos rever tudo.
Se os deputados tivessem aprovado decretos, se os fiscais e engenheiros tivessem feito corretamente seu trabalho, às vezes até jurados de morte para assinarem pareceres enganosos. Se tudo isso pudesse ter acontecido, tantas vidas teriam se salvado.
Porque a vida é tão preciosa! Mais preciosa que qualquer coisa, que qualquer dinheiro do mundo, que qualquer ouro de Esmirna. Para um condenado à morte, a vida é tudo. Bastaria a vida, o resto seria reconstruído com garra, com luta. Em qualquer canto, qualquer pasto, com qualquer burrinho, plantariam ou trabalhariam de sol a sol. Mas voltariam pra casa todos os dias para abraçar seus filhos, para vê-los crescer. Para sair de mãos dadas com a mulher ou marido, tomar um sorvete na praça, irem ao cinema todos juntos, enfim, para viver essas pequenas coisas que são tão grandiosas. Morreriam sim, um dia, quando a vida já tivesse sido cumprida, morreriam sim porque todos morrem um dia, mas não devia ser tão estupidamente, com morte tão trágica, tão dolorosa. Morreriam sim, um dia, mas não porque uma minoria podre de rica e cheia de poder fechou os olhos para o perigo que seus funcionários corriam.
Não há dinheiro que pague uma vida. Não há indenização que aplaque a dor da moça que se salvou, mas teve seu menino de dois anos arrancado de seus braços pela lama cheia de fúria. As pessoas lá do alto do poder sabem o preço das ações milionárias, do lucro, sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada.
Sou escritora, sou poeta, carrego a dor dentro do peito e muitos “se” que ficaram enterrados no fundo da lama. Mas o “se” é apenas um sonho. Nesse momento de tanta tristeza e desesperança, podemos, ou refletir sobre o desespero dos oprimidos, ou concluir, como Antero de Quental que, “só dor existe”, ou ainda e apenas as duas coisas, o que dá no mesmo.
Misa Ferreira escreveu e publicou os livros: Demência, o resgate da ternura (autobiográfico) /Santas mentiras (Crônicas) /Dois anjos e uma menina (infantil) /Estranho espelho e outros contos, além da coluna “Verbo Inverso“.