Eu, Luís Alves de Lima e Silva – Duque de Caxias, aos 15 de abril de 1880, deixo minhas últimas palavras aos que porventura queiram saber de minhas impressões sobre minha própria vida, minhas alegrias, minhas culpas, minhas vitórias e fracassos, minha trajetória militar, minha carreira a serviço do Império do Brasil, e de soldado de S. Majestade.
Bem sei que me resta pouco tempo de vida, pois minha enfermidade é grave. Não tenho exatamente medo da morte, embora um fio de aflição me percorra todo o corpo, como a ponta de uma faca afiada, deixando-me desconfortável. Se isto é medo, então eu o tenho, como o tive em toda minha vida. Medo de perder minha amada mulher e filho, que, aliás, perdi e nada pude fazer a respeito. Medo de não corresponder à S. Majestade como seu fiel soldado, medo de errar em meus julgamentos e decisões em ocasiões de severa importância para o Brasil, e outros tantos medos que me acompanharam. Penso que isto provenha da minha miserável humanidade. Por toda a nação correm boatos de que sou grande herói militar, mister em descortino administrativo e outras bobagens que não me livrarão do destino comum a qualquer homem: o seu fim. Portanto, como qualquer outro mortal, sou feito de carne, ossos, sinto dores físicas e morais. O medo existe e nunca nos deixa, como inimigos no escuro da noite nas batalhas, contudo nosso escudo é a coragem. Este sim, deverá ser nosso emblema.
Há tempo que me consome esta moléstia hepática. Meu fígado está intumescido e a dor chega e vai embora quando quer. Esta batalha contra a doença eu vou perder, pois certamente é disso que estou morrendo lentamente. Se minha idolatrada mulher, minha querida Duquesa Anica aqui estivesse, tudo eu suportaria com bom ânimo. Ela era sempre o meu refúgio, o meu oásis entre um deserto de uma batalha e outra. Agora, por mais que esquadrinhe meus olhos tentando buscar sua imagem, mesmo distorcida como assim veem os que caminham muitos dias pelos desertos, nada encontro, apenas o vazio. Às vezes me vejo obrigado a buscar suas feições no quadro pintado da sala porque me esqueço de seu rosto, seus traços me escapam, e isto me tortura. Entretanto, isto não é proveniente da velhice, pois a vida toda enquanto me ausentava de casa para servir ao Império do meu país, sofria por não me lembrar do rosto de minha Anica. Como é preciosa a presença da mulher amada!
Médicos e recursos valiosos não me faltam, mas nada podem fazer a não ser amenizar a dor e o sentimento de desconforto que me maltrata. A velhice chega para todos, indubitavelmente, é a humilhação final que nos impõe o bom Deus, limitando nossos movimentos, nossos sentidos, e já nos preparando para deixar o invólucro emprestado em vida e nos fazendo acostumar com a invisibilidade da alma. Quem percorreu campos de batalha entre incontáveis perigos sabe que a morte natural é a batalha final. E talvez essa humilhação dos últimos tempos a que me refiro seja mesmo necessária para quebrar a inevitável arrogância a que estamos sujeitos em vida.
Confesso que foi muito difícil para o homem que sou, constatar que já não conseguia montar meu cavalo encilhado, logo eu que fui tão bom cavaleiro. Foi um momento de profundo desgosto, e não consegui evitar o choro diante de meu filho de criação que, embaraçado, não sabia o que fazer. Passado o primeiro momento de sofrimento, tranquilizei-o e voltei para dentro de casa decidido a não mais montar. Vale lembrar que as medalhas, os títulos, as insígnias, as comendas, os uniformes impecáveis e as espadas reluzentes, bem, tudo será deixado aqui. Para lá, do outro lado da fronteira da vida, nada disso será contado, nada disso terá valor. Dessas verdades nunca me esqueci, sempre soube, e sinceramente, procurei me lembrar a cada dia de minha vida para que não me envaidecesse com feitos e vitórias. A vaidade é para mim a mais tentadora das misérias, uma inimiga pior que os inimigos em campo de batalha, e sou obrigado a confessar que me senti vaidoso de quando em quando, mas sempre procurei me manter disponível e vigilante diante desses perigos espirituais, como todo bom soldado diante dos perigos temporais. Afinal, soldado a serviço do Império foi o que fui e ainda o sou em minha alma.
Devo deixar registrado o especial orgulho de ter sido o soldado de S. Majestade, por quem nutro profunda admiração. É pessoa de singular personalidade. Tive a grata honra de conhecê-lo em seu cotidiano. Comprovei pessoalmente como é prudente, agindo sempre com moderação, o que desagrada a muitos. Acusam-no de amar os livros, os poemas e de ser relapso nas questões políticas. Bem, há os que nascem para a filosofia, outros para a literatura, outros para a política. Ele é o Imperador e foi educado e preparado com esmero para ocupar seu papel. Talvez tenha sido bem educado sobremaneira, e seu contato com as artes fez aflorar de tal modo sua incrível sensibilidade, que o peso de um governo lhe seja demasiado grave. Nessas questões não tomo partido. Cumpro à risca o meu dever e o que é de minha conta. O que afirmo e ratifico com certeza é o seu amor incondicional pelo seu querido Brasil, fato inegável.
Fui instrutor pessoal de equitação de S. Majestade e também seu Ajudante de Campo. Eu era o oficial que o acompanhava, digo isto com muito orgulho, não com a vaidade pelo fato dele ser o Imperador, mas pela pessoa de incontestável lisura que é. Tornamo-nos amigos, e algumas vezes ele me fez ouvir alguns poemas que escrevia secretamente como também ouvi dele desabafos pelo peso de um reinado que ele não escolheu, mas que lhe foi impingido ainda quando era tão criança. Que sabem aqueles que o criticam? Que conhecem tão a fundo para julgá-lo precipitadamente? Como se atrevem a criticá-lo? Eu, de minha parte, defendi e servi a pessoa de S. Majestade bem como ao Império de forma mais exemplar que pude fazê-lo, embora algumas vezes não concordasse com o Imperador. Este era o meu ofício.
Nasci militar, penso que essas coisas já estão no sangue, pois meu avô era militar e assim meu pai. Com 14 anos já entrava para o serviço efetivo. Com 15 anos de idade já me tornava alferes e ingressava para a Academia Real Militar. Lutei a minha vida toda. Lutei na Bahia pela pacificação do movimento contra a independência do Brasil, e por essa atuação recebi o título que muito prezei, o de Veterano da Independência. Mantive a unidade nacional na Campanha da Cisplatina. Também atuei como pacificador na Província do Maranhão com o movimento da Balaiada. Assim também foi na Província de São Paulo, quando fui chamado por S. Majestade para pacificar a região. E da mesma forma, foi nas Minas Gerais e na Província do Rio Grande do Sul. Enfrentei as tropas de Manoel Oribe no Uruguai. Enfim, lutei minha vida toda pela paz. Até que teve início a Guerra da Tríplice Aliança, reunindo o Brasil, Argentina e Uruguai contra as forças paraguaias de Solano Lopez.
A atuação na Guerra do Paraguai foi meu espinho na carne, mas eu era o Soldado de S. Majestade e devia proceder da melhor maneira possível, cumprindo meu dever. Impossível colocar em palavras a profunda comoção que esta guerra provocou em meu espírito. De todos os combates que participei, que comandei, que assisti, nunca havia enfrentado povo com tal bravura, intrepidez e valentia. Relatei à S. Majestade que a terrível carnificina já dizimara tanto nossos soldados como quase toda a população paraguaia. Se matássemos todos os homens, também teríamos que matar as mulheres que combateriam animadas por um arrojo inigualável, pois eram levadas a tal espírito de vingança, que iriam suceder aos seus homens com o mesmo ardor marcial. O triunfo sobre um povo dessa têmpera pesaria para sempre sobre os ombros dos que os atacassem, sem a mínima dúvida. São tão bravos que até os mortos pareciam se levantar para se juntar aos vivos e combater eternamente. Até os fetos de mulheres paraguaias nasceriam antes de seu tempo para defender seu povo. Enfim, quantos soldados, quantas vidas ainda precisaríamos para terminar a guerra, para exterminar o último grito de vida dos paraguaios? Nós os reduziríamos ao pó, literalmente.
Eu bem sabia que nossas tropas sofriam muito. O calor nas matas era insuportável, nossos homens morriam como ratos. Os paraguaios pareciam estar em toda a parte. O que nossos soldados tinham pela frente eram ruínas, cadáveres espalhados, cenário de horror, mau cheiro infernal. Passa-se um tempo numa tortura assim, e os soldados já começam a delirar, doentes do corpo, da alma e da mente. Os feridos desejavam morrer, perdiam a esperança de voltar para suas famílias, tudo ficara para trás como um sonho bom, as mães, as mulheres, os filhos, pessoas que eles também, tal como eu, já não se lembravam das feições. Adormeciam tentando recompor os traços que lhes escapavam, consumidos pela febre alta da peste e dos ferimentos. Os bons escravos convocados ansiavam mil vezes pelo retorno à escravidão no Brasil para escapar ao inferno daquela guerra. A guerra é má, a história do mundo está repleta de guerras, de batalhas sangrentas, e isto não para nunca. A guerra é do homem contra o homem. Nada como a paz.
Há fatos na vida de um homem que não se contam. Um homem tem direito aos seus segredos até que a morte o liberte. Aí então tudo poderá ser revelado, pois pouco importa o que digam, o que pensem. Encontrei Solano Lopez, o grande comandante paraguaio, melhor dizendo, ele me encontrou. Estivemos frente a frente, cara a cara, olhos nos olhos. Nunca poderei me esquecer até meu último instante de vida. Com uma rara dignidade, pediu-me para que eu conseguisse a pacificação para que aquela estúpida guerra terminasse. Eu lhe prometi que tentaria, mas sabia que nesta questão S. Majestade não cederia, como não cedeu. Tudo isto permaneceu como segredo de Estado, tanto de lá, como de cá. Ele veio até mim porque sabia que eu não poderia matá-lo. Éramos fortes soldados, combatentes ferrenhos, mas amantes da paz. Ele queria a paz para seu povo, e eu para o meu. Enfim, não dependia de mim. Trocamos poucas palavras, talvez por culpa da lua que era imensa, e a todo instante nos escondíamos procurando um pouco de sombra porque a claridade era intensa, quase de uma manhã banhada de sol, e facilmente seríamos percebidos. Era necessário que ninguém soubesse. Secretamente, na maior sinceridade de minha alma, eu o admirava, e penso que ele a mim. Nem Anica soube deste fato. Segredos são segredos. Até hoje eu me lembro e sempre vou me lembrar da força que havia naqueles olhos. Depois daquele fato, nada me restava, senão me retirar daquela empreitada.
Adoeci pela guerra, nas guerras, nas batalhas. Quem vai à guerra, não há como não adoecer de alguma maneira. O corpo assume o desespero da alma e para aliviá-la, recolhe para si o sofrimento. Aí vem o tremor das mãos, a dor, a solidão interior. A guerra é má, nada como a paz. Eu amo a paz.
Esclareci à S. Majestade que a paz era o nosso único caminho para nos salvar de nossa perigosa situação. Argumentei que nossos exércitos têm como objetivo garantir a segurança interna e externa do país, arrancar as armas dos inimigos, defender as instituições da Pátria, manter a honra nacional e preservar as relações do Estado com outras nações. Portanto, preocupava-me muito a ordem inconstitucional de apreender homens, fossem pais de família, anciões e até crianças para enviá-los aos nossos exércitos. Não, S. Majestade haveria de compreender que assim ameaçava a sorte do seu Império. Tudo isso relatei fazendo jus aos meus sentimentos e minha eterna lealdade ao Império de S. Majestade.
Insisti na paz, na paz com Lopez, único caminho que nos restava para nos salvar. Mas S. Majestade parecia acometido de um insano ódio por Lopez, nada se podia fazer para deter sua obsessão em exterminar o comandante supremo dos paraguaios, justo o Imperador que era tão moderado. E Lopez mostrava tanto sua invencibilidade, como também sua dignidade. Eu, à frente dos exércitos imperiais já não podia mais ficar para testemunhar a terrível derrocada e carnificina que estava por vir. Dessa maneira, pedi à S. Majestade que aceitasse a graça de me conceder a demissão do posto que ele havia a mim confiado. E assim, ainda que sempre leal soldado e súdito de S. Majestade, roguei-lhe que recebesse este meu pedido, pois há coisas que também não posso. Dei por encerrada a guerra, voltei para o Brasil sem capturar Lopez, como era o desejo de S. Majestade.
Retornando à Corte, constatei aliviado que ninguém me recebia com festejos, nenhum representante do Governo. Somente ela me esperava, minha idolatrada Anica, minha mulher, amiga, companheira e amante, a mulher que esquentava meu leito, só ela. Era o que me bastava, era o remédio de que eu precisava. Não satisfiz o desejo de S. Majestade ao retirar-me do comando, mas ainda assim, ele me conferiu o título de Duque. Isto foi com ele. Nada pedi, nada me faltava.
Há outras lutas em minha vida que também perdi. Falo das perdas pessoais, das mortes de meu filho e de minha mulher. Foram momentos extremamente difíceis em que procurei em vão a bravura e intrepidez que facilmente estavam ao alcance de minhas mãos nos campos de batalha. Confesso que tais qualidades, se assim posso chamar, me faltaram nessas perdas pessoais. Se meus soldados pudessem ter me visto, já não sentiriam a mesma admiração e até veneração religiosa de que ouvi falar. Eu era um farrapo humano, não me reconheceriam, com certeza. Mas enfim, penso que todos que perdem seus amados também sentem tal fraqueza inevitável. A perda de minha querida duquesa foi dolorosa, mas a de meu filho, bem, não posso dizer que tenha me ferido mais, mas foi diferente. Só quem perde um filho poderá entender a dimensão dessa perda.
Mas, mais do que essas perdas que não ocorrem por nossa culpa, há males maiores dos quais temos inteira responsabilidade e é preciso coragem para reconhecer. Falo de outro sofrimento. Levianamente, trouxe um menino indígena do Maranhão, órfão de mãe, para morar conosco em nossa casa, no seio de nossa família, porém nunca consegui amá-lo como meu filho. Que direito eu tinha de tirar um filho das matas de sua gente, de suas raízes, só porque perdera a mãe e sentia falta dela? Arrogantemente, julguei fazer um bem, cego que estava, embriagado que estava do poder das vitórias. Eu podia tudo! Assim, conversei com o cacique que concordou que o menino viesse comigo. Trazer um menino índio para minha casa era como uma espécie de conquista excêntrica, uma espécie de bondade, digamos assim, nem sei bem colocar isso em palavras. Foi um grande erro. Ele, um menino frágil, ainda pequeno, não pôde decidir. Eu não me dei conta de que sua mãe morrera, mas sua terra estava lá, sua gente estava lá, e, além disso, a terra onde nascemos e vivemos é também nossa mãe. Nunca deveria tê-lo trazido para minha casa.
Tenho de conviver com esta culpa. Também arranquei seu nome indígena fora e coloquei o meu, como se isto fosse grande coisa. Às vezes penso que Deus me puniu, tirando-me meu próprio filho, meu filho de sangue. Que assim seja. O que Deus faz é certo. Em pouco tempo o menino índio percebeu que eu não conseguia amá-lo como filho. No entanto, ele amou meu filho como a um irmão legítimo, e meu filho a ele. Deixaram-me de fora desse relacionamento fraterno, talvez intuindo minhas fraquezas e minhas impossibilidades. Muitas vezes, o índio nos deixava e se embrenhava pelas matas, para sofrer em sua solidão. Peço que ele me perdoe, se puder. Um homem é feito de tudo, de vitórias, de fracassos, de bondade, de humildade, de arrogância e maldade. Não fui diferente, não sou diferente. Haverei de responder pelos meus atos, disso ninguém escapa.
Se é que posso me arrogar o direito de dar conselhos, digo aos que governam diretamente a Pátria, que a defendam como a sua mãe. Aos soldados, que o medo existe e para ele existe a coragem. Para os demais, que apenas procurem agir corretamente, mas saibam que erramos muito mais do que acertamos. Pelo menos, procurem encarar e enfrentar de frente, a verdade. Nada é mais eficaz para a liberdade do homem do que a verdade. Daqui de onde escrevo, já é noite, e a lua cheia brilha imponente tal qual a noite em que eu e Lopez nos encaramos, e daquela lua, como daqueles olhos fortes eu nunca pude me esquecer.