Era a fila da identidade e como toda a fila, as conversas eram o jeito para passar o tempo. Duas mulheres trocavam receitas, um casal falava baixinho, trocando beijinhos sensuais atrás das orelhas. Uma senhora gorda se abanava, reclamando do calor, da burocracia e dos preços das coisas. O moço olhava para baixo, com saudade do silêncio de seu quarto, mas resgatar a identidade era preciso. Mais adiante todos desviavam de um cachorro de rua que dormia placidamente no meio do caminho da fila, enrodilhado em volta de si mesmo, como se estivesse em cama de rei, alheio a tudo e a todos. O moço sorriu timidamente para a vida, a figura do cachorro deu-lhe coragem. Ameaçou levantar os olhos, assim, de leve. Ouviu-se uma discussão lá dentro da sala. Todos levantaram os olhos, ávidos por uma novidade. Saiu uma mulher pisando duro, “esse povo pensa que a gente tem o dia todo, preciso trabalhar, isso sim!”Logo, um dava a informação para outro, “ela esqueceu a certidão”.
Agora faltava pouco tempo. Eram só seis antes dele. Observou um homem de terno, andando elegantemente com as mãos nos bolsos e distribuindo cumprimentos e sorrisos para todos. O moço lembrou-se da identidade que destruíra quando ficou doente. Nem pretendia fazer outra, nunca mais, mas a vida surpreende, acordou um dia querendo viver de novo, com vontade de trabalhar. Em quê? Qualquer coisa, tanto fazia. A funcionária chamou, “senha 34″,ele chegou inseguro, esperou a indicação para se sentar. “Muito bem, seu João Antonio, agora é só esperar ficar pronto. O senhor pode procurar dentro de dois dias. Tenha um bom dia!”
Nunca foi tão fácil e tão difícil. O moço levantou-se prontamente e saiu, apertando os olhos para ver melhor o infinito do céu azul. Acabara de dar o primeiro passo para resgatar sua identidade. O cachorro continuava dormindo o sono dos justos.