É sempre uma luta árdua o despojamento de si mesmo, vencer os vícios, as más inclinações, o amor às honrarias. Sabemos que nossas inclinações pendem muito mais para o mal do que para o bem. Luto contra muitas más inclinações, preguiça, julgamentos, vaidades. Ah as vaidades! Sou vaidosa, reconheço, dou a mão à palmatória. Tento me cuidar, estar bem apresentada e tal, fazendo o que posso. Não faço loucuras nem gasto horrores até porque minha renda não está com essa bola toda.
Vamos aos fatos. Minha identidade já estava com prazo vencido, passando de dez anos. Naquela minha foto, eu ainda estava com os cabelos tingidos e minha tez logicamente estava mais jovem, nada mais natural, o tempo passa, a gente envelhece. Então, fui com os documentos necessários ao estabelecimento da Prefeitura que agora trata disso. A mocinha, gentilíssima, foi processando tudo lá até que chegou o momento da foto. Ela me instruiu, fiquei olhando para a câmera e logo apareceu minha cara numa tela gigante. Levei um choque! A gente envelhece, eu sei, mas lá naquela tela eu estava escandalosamente velha, parecia ter 135 anos! Brincadeira, mas o fato é que fiquei chocada. Não, eu não estou assim, não quero esta foto velhíssima na minha identidade. Não querooo!
Mocinha, quantas tentativas a gente pode fazer? Ela sorriu compreensiva e disse: quantas a senhora quiser, fique tranquila. Pois bem, tentamos umas três vezes e cada foto parecia uma pior que a outra. Até que me dei por vencida, e desvalida e deprimida. É, não tem jeito de melhorar. Fiquemos com esta última. Fazer o quê? Idade é idade. A moça foi finalizando e quando já estava tudo praticamente pronto, fui acometida por um férreo ímpeto e tal qual um náufrago que avista uma taboa no vasto oceano ou ainda um condenado na forca que implora por um último perdão do rei, pedi uma última vez: desculpe insistir, mas será que ainda dá para uma última tentativa de foto melhor? Ou quem sabe eu posso fazer um selfie, meus selfies são uma belezinha, quer ver? Claro que foi brincadeira, mas como costuma dizer meu marido sobre um ditado de sua velha sogra portuguesa: “é brincando que se dizem as grandes verdades.” A moça colocou um pouco de dificuldade, disse que teríamos que recomeçar tudo, mas enfim, assentiu. Ficou a quarta foto, nem pior nem melhor que as outras três, porém, serviu para eu ir me acostumando com a foto real, nua e crua. Afinal, a gente se acostuma com tudo na vida.
Bem, como eu disse em um poema, a carteira de identidade não é de todo uma verdade. Lá está meu nome, de meu pai, minha mãe, o dia, mês e ano que nasci. Mas não fala das dores que sofri, das alegrias que vivi. Na identidade, não consta aquela saudade daquela cidade que eu perdi. Lá não estão minhas lágrimas, meus sonhos, minha fala, minhas lembranças, minha história que escrevo todos os dias. Não, minha identidade não é de todo uma verdade. É apenas um papel, um simulacro do que eu sou. A informação é correta, mas não diz que sou poeta. Falta quase tudo nesta triste gravura. Falta ternura.
A identidade não é de todo uma verdade, só tem duas verdades verdadeiríssimas, a data de nascimento que não mente e a foto que não a deixa mentir. Tudo isso realmente aconteceu, não falo mentira, só costuro e bordo um pouco, querendo dizer que exagero ao escrever porque quem escreve aumenta um tanto e também brinco muito para a vida não ficar tão difícil.
*Autora dos livros: Demência: o resgate da ternura, Santas Mentiras, Dois anjos e uma menina, Estranho espelho e outros contos, Asas por um dia e Na casa de minha avó. Graduada em Letras e pós graduada em Literatura. Premiada várias vezes em seus contos e crônicas. Embaixadora da Esperança (Ambassadors of Hope) com sede em Calcutá na India. A única escritora/embaixadora do Brasil a integrar o Projeto Wallowbooks. Desde 2009 Misa é articulista do Conexão Itajubá, enviando crônicas e poemas. Também contribui para o jornal “O Centenário” de Pedralva.