E lá fomos em uma Kombi e mais um carro. Meu pai não foi. Adorou ficar sozinho em casa curtindo o Jornal do Brasil e o silêncio de que tanto gostava. Minha mãe, minha tia, meus irmãos e algumas colegas de minha irmã lotaram os carros, cada um com um colchonete. Foi uma festa! Éramos jovens, o sol despontou maravilhoso todos os dias, voltávamos para a casa bronzeadas, famintas, e com bom humor enfrentávamos a fila interminável para o único banheiro existente. Algumas de nós lavávamos o cabelo na torneira do tanque espirrando água umas nas outras e tudo era motivo de riso e felicidade.
Bem, quero mesmo é falar de minha mãe, uma pessoa sempre presente em meus pensamentos, em minhas lembranças e tudo que escrevo. Ela era uma mulher muito séria, muito religiosa, sem qualquer traço de vaidade. Nunca vi minha mãe usar um batom, nem uma base de esmalte, nunca a vi se admirar no espelho, a não ser para conferir se estava vendendo farinha. Pra quem não conhece esta expressão antiga é quando a anágua ou combinação deixavam um pedacinho de renda para baixo do vestido. Nunca a vi rir abertamente, gargalhar. Não, minha mãe não. Quando achava muita graça e o riso era incontrolável, ela colocava as mãos sobre a boca. Que coisa né? E era uma mulher fantástica!
Não sei quantas almas subiram do purgatório para o céu naquele passeio à praia, mas o fato é que minha mãe se permitiu vestir um maiô de minha irmã e se lançou ao mar. O que quero dizer é que ela fez uma coisa inédita e ousada. A princípio entrou timidamente sentindo a água bater em seu corpo e logo já pulava as ondas que eram suaves. Nunca vi minha mãe tão feliz em toda minha vida. Como ela deixava o riso sair, como vibrava. E ela ficava mais bonita do que já era. Seu corpo era escultural! Pela idade e já com seis filhos é lógico que uma barriguinha se mostrava, mas coisinha de nada. Pernas bonitas. E a tez? ah a tez! Aquela tez linda, aquela testa de Ingrid Bergman, aquele nariz!
Fizemos outros passeios à praia, mas ela já não se permitiu mais sentir aquela alegria. Voltou a se conter, depois foi se fechando cada vez mais, cada vez mais até que uma tristeza irremediável cobriu seu semblante.
Eu fico sempre imaginando que depois de nossa morte teremos que comparecer sim diante de Deus, mas não é aquele Deus carrasco, acusador, não. Deus não é assim. Mas compareceremos. E acho que ele vai conversar com a gente. Deus vai fazer duas perguntas: você atropelou alguém? Você se deixou atropelar por alguém? Ou, de outra forma: você foi feliz? E você fez o que pôde para fazer felizes outras pessoas? São perguntas que levam um tempo pra a gente responder porque a felicidade vem sempre muito mascarada. Mas Deus que é o maior psicanalista de todos tempos e todos os mundos e que sabe de tudo e se lembra de tudo vai nos fazer lembrar. Então minha mãe deve ter ficado em silêncio. E Deus teria dito: e o mar em Caraguá, tava bom? Aí os olhos dela devem ter brilhado e ela deve ter aberto um sorriso lindo e certamente disse: ah eu fui tão feliz! E Deus também deve ter sorrido feliz. Aí Ele encaminhou minha mãe para uma estação de águas em mares nunca dantes navegados, os maravilhosos mares celestiais onde ela está sempre sorrindo e onde um dia eu vou encontrá-la. A morte é a cura final, disse Guimarães Rosa.
Mas enquanto isso, enquanto cá vivemos é tempo de nos lançarmos ao mar. Que assim seja feito.
Aposentada, Misa descobriu o prazer da literatura e passou a escrever contos e crônicas. É formada em Letras pela FEPI Centro Universitário e pós-graduada em Literatura pela Unitau. Escreveu e publicou os livros:Demência, o resgate da ternura (autobiográfico) /Santas mentiras (Crônicas) /Dois anjos e uma menina (infantil) /Estranho espelho e outros contos, além da coluna “Verbo Inverso“.