Ao traçar as linhas mais salientes da vida do ser humano, devemos necessariamente nos transportar aos primeiros dias de sua existência e, a partir daí, segui-lo através de suas idades. Só assim poderemos explicar para nós mesmos o porquê de muitos fatos ou episódios que ocorrem ao homem desde que começa a conduzir-se no mundo por própria conta.
É inquestionável que todo o período compreendido dentro do que se chama infância se desenvolve de modo muito diferente do registrado no transcurso das outras idades. Durante esse período, o mecanismo mental da criança permanece um pouco menos do que estático, com exceção da imaginação, que desempenha nela um papel principalíssimo. A imaginação é sua lâmpada de Aladim: no mundo mental em que vive, onde a razão não funciona, suas concepções são, por lógica, irreais, sendo os pensamentos com os quais convive atraídos até ela por suas próprias tendências naturais. Ao mais leve impulso de sua vontade e por força de sua imaginação, tudo aparece ali como por arte e magia. Eis porque supre com tanta facilidade a falta de coisas reais, recorrendo a imagens que toma por tais em virtude mesmo de seu estado de inconsciência. A imaginação constitui, portanto, o cenário real da vida e desenha com caracteres muito vivos, na tela mental da criança, cenas, episódios, passagens, contos, etc., que ela toma como verdade. Muitos desses episódios, passagens, etc., costumam gravar-se tão profundamente, por força da impressão recebida, que, mesmo através dos anos, se mantêm como algo vivo dentro dela. É que, nesse mundo irreal, os pensamentos que atuam são reais; o que ocorrem, porém, é que tais pensamentos agem, na maioria dos casos, sem discriminação alguma no que tange aos atos do ser, o que explica por que o comportamento das crianças não é sempre igual: suas manifestações inteligentes e seus sentimentos tendem tão prontamente para o bem quanto para o mal. Os primeiros movimentos da razão são os que, no devido tempo, começam a modelar a conduta seguida durante a infância.
Mas existe ainda algo mais: pode-se afirmar que duas razões lutam para se apoderar da criança, para subjugá-la e fazê-la súdita de seus respectivos impérios: o reino do bem e o reino do mal. A criança, na verdade, pode atuar nos dois, porque sua razão não intervém. Como dissemos, são os pensamentos que atuam nela, os quais, movidos por sua imaginação, vão de um ponto a outro, sem controle; sob a sugestão do que ouve ou vê, agem num ou noutro sentido. Isso assinala a dupla configuração de sua psicologia e a incapacidade de sue entendimento para compreender a diferença substancial que exite entre as coisas reais e as irreais, entre o bem e o mal.
À medida que cresce, acentua-se a luta das duas tendências que a dominam, e assim, enquanto a visão quimérica do paraíso, forjada por sua imaginação, projeta sobre sua mente imagens de cores vívidas e alegres, que enchem de felicidade, o sombrio reino do mal trata de projetar-lhe, pelo concurso de pensamentos dessa origem, imagens sedutoras que a impressionam pela atração que delas se desprende, cuja finalidade tende a incliná-la para os afagos de seu diabólico império.
É conhecido esse paraíso mental que a infância, incitada pelas lendas que os adultos lhe relatam, povoa de fadas, de anõezinhos ou gigantes, numa multiplicidade de formas e coloridos extraordinariamente sugestivos. A criança, de per si rebelde, costuma cansar-se de tais imagens, e é esse o momento em que os pensamentos que respondem ao reino do mal comparecem solícitos à sua mente, a fim de fazê-la errar. Para representar o mal quando atua sobre a mente do menino, não poderíamos criar melhor figura que a conhecida com o nome do diabo. É este que, com todas as aparências de um poder natural, se apresenta à sua imaginação em mil formas diferentes, para oferecer-lhe tudo que ele possa anelar, seja o poder dos gigantes, seja o possível domínio de terras inexploradas, das quais o menino se sente rei, etc. Com a projeção dessas imagens produzidas alimentar a nascente ambição de domínio, começa muitas vezes a gestar-se ditador, que desde esse instante trata de agir sobre o mundo que o rodeia: irmãozinhos, amigos, e até sobre os próprios pais. Se tal diabo fosse visível, certamente o veríamos esfregar as mãos e rir histericamente ante seu primeiro triunfo, enquanto enfoca outras imagens com sua lanterna mágica, pois sabe que, durante esse período da infância, o ser tem defesas muito escassas, em razão de sua orfandade de conhecimentos.
Entretanto, tal como o dia que avança sobre a noite como a querer iluminá-la, a razão da criança, que aumenta dia a dia ao crescer ela em anos, trata de iluminar sua inteligência, a fim de que não sucumba nos domínios da insensatez. Quando chega a idade em que aparece a razão pugnando por seu pleno apogeu, e com ela a reflexão, o mecanismo mental se vai gradualmente estabelecendo para ser usado durante a vida. Como, porém, nessa segunda idade é necessário penetrar no mundo da realidade, ou seja, no mundo onde é forjado o destino dos que até esse momento haviam sido crianças, o ser se vê obrigado a enclausurar seu primeiro mundo e penetrar naquele em que seus semelhantes vivem e desenvolvem suas atividades. É lógico que, no começo, as coisas sejam quase que incompreensíveis para quem está se iniciando nele, custando-lhe muito, em consequência, conhecer cada uma delas para saber usá-la com inteligência.
É esta a passagem mais dolorosa e sensível que os seres atravessam, porque todos, podem dizer que sem exceção, acreditaram serem pequenos sábios naquele minúsculo mundo da infância; pequenos sábios que confiavam em sua plena suficiência e nunca pensaram, ao transporem as fronteiras da meninice e se incorporarem ao mundo dos homens, que deveriam começar por confessar sua ignorância. É indubitável que constitui um dos episódios mais duros da vida do ser o fato de se ver nessa situação, quando tudo, merecê de sua generosidade imaginativa, fazia supor o contrário. Eis, portanto, o pequeno sábio despertando e convertido bruscamente num pequeno ignorante, e eis também a primeira humilhação que o ser recebe ao tomar contato com a realidade. Tão belo era aquele mundo no qual tudo obedecia ao menor gesto de sua vontade, não contrariada nunca por nada nem por ninguém, e no qual sempre teve razão, pois não a conhecia.
Quantas vezes cada um terá podido experimentar dentro de si mesmo a realidade da influência daquele pequeno mundo lutando para sobreviver na própria vida, e quantas vezes, com todo o tino, terá o homem precisando compadecer-se de seu pequeno sábio! Também possivelmente, quantas tentativas fez para recorrer a essa sabedoria da infância que antes havia preenchido toda a existência! Mas que conselho podia dar, ou que ensinamento, se para essa sabedoria não existe explicação possível, tão diferente ela é, em natureza, das coisas e dos fatos que a vida e o mundo dos homens entalham sobre uma realidade inexorável? A sabedoria universal é, não obstante, tão grande, tão magnânima que, enquanto se produz a transição de um mundo a outro, ou seja, do mundo da infância – irreal, por imaginativo – ao dos homens – real, por estar regido pela razão, e no qual devem ser enfrentadas situações difíceis -, quase sempre se apresenta em última instância, quando parecia que a esperança fugiu do ser, a solução feliz e salvadora.
Como um imperativo da consciência, deve-se advertir que é preciso ser levada muito em conta a diferença substancial já descrita entre os dois mundos enunciados. No primeiro, que acabamos de chamar de paraíso da infância, a razão da criança, repetimos, não atua, enquanto que no segundo, no mundo do adulto, ela deve imperar para a discriminação de tudo o que se refira à verdade e ai erro.