Conhecemos Kenichi nos anos sessenta. Foi uma época mágica, com a explosão dos Beatles, com a chegada da televisão, o movimento hippie e mais revoluções que mudariam a cara do mundo. Também o homem chegava à Lua, o que provocou a desconfiança de minha avó que se recusava a olhar na televisão o grande passo da humanidade. Eu mesma a vi sozinha em pé no quintal de olho na lua para ver melhor, dizia ela. Naquela época as coisas eram diferentes, tudo era diferente. A porta de nossa casa ficava sempre aberta e morávamos na última casa da rua com muitas árvores no quintal. Hoje o mundo se tornou um lugar muito perigoso e certamente, se fosse agora, as coisas teriam se passado de outra maneira. Não teríamos acolhido aquele sujeito singular em nossa casa e não teríamos conhecido uma pessoa tão especial que marcou profundamente nossas vidas, mais especialmente a minha. Jamais esquecerei Kenichi, a pessoa que percebeu meu sofrimento de menina.
Havíamos mudado de cidade porque meu pai fora transferido no serviço. Éramos vários filhos, mas somente eu, nos meus poucos dez anos, mal enxergava a estrada pelas lágrimas abundantes que caíam de meus olhos. Minha mãe suspirava profundamente e olhava entre compassiva e aborrecida aquele meu comportamento, sem conseguir compreender por que eu sofria tanto. Não cabia em meu entendimento como é que uma infância tão plena e feliz pudesse caber em um caminhão de mudanças. Levamos tudo o que possuíamos, mas eu deixava minha felicidade de criança para trás. Eu odiei a nova cidade, a escola, a casa, a vida. Todo sorriso de criança, antes tão pródigo na minha cara, fugiu por bons anos. Lembrei-mede uma frase de Mario Quintana: “da primeira vez que me assassinaram, perdium jeito de sorrir que eu tinha”.
Ficamos instalados provisoriamente em uma casa velha, com um grande quintal e uma casinha nos fundos. Meu pai havia viajado, e certa noite gelada de inverno, quando voltamos para casa depois de vir da igreja, demos com um rapaz japonês encolhido num canto da varanda. Mal agasalhado, sujo e fraco, ele tremia da cabeça aos pés. Minha mãe logo percebeu que ele estava doente e com muita febre. Sem pensar duas vezes, caridosa como sempre era, ela acolheu o pobre moço em casa e naquela noite ele ficou na cama cedida por um de meus irmãos. Minha mãe cuidou dele como se cuida de um filho. Logo ficou claro para nós que ele não falava nem entendia nossa língua. Para nós, crianças ainda, aquilo era uma novidade sem precedentes, ao contrário de meu pai que, ao voltar de viagem, repreendeu minha mãe severamente. Lá em casa era tudo como estava escrito na Bíblia, a última palavra era sempre de meu pai, mas em certas questões era minha mãe que mandava, portanto o japonês ficou.
Como ele ainda se recuperava, minha mãe conseguiu alojá-lo na casinha que havia no fundo do quintal. Meu pai não gostou, mas aceitou. Assim que a sopa ficava pronta, eu e os irmãos levávamos para ele. E não arredávamos o pé assistindo ao moço tomar a sopa. Depois que acabava, ele fazia uma reverência para nós e dizia algo que devia ser “obrigado”. Ele não falava, nem entendia português, nem nós sua língua, contudo nos comunicávamos sem grandes problemas. Percebemos suas mãos ásperas e feridas, o que fez meu pai imaginar que se tratava de um imigrante que trabalhara como colono em alguma fazenda. Assim que se sentiu melhor, o japonês, sempre depois de uma reverência, passou a apontar o dedo para si e dizer: Kenichi! Pronto! Já sabíamos seu nome. E ele logo aprendeu os nossos, pois que também nós fizemos nossas reverências, apontando cada um para si e dizendo nossos nomes.
Aconteceu que Kenichi foi sarando e foi ficando, mas sempre ocupado. Ainda muito magro, apareceu um dia na porta da cozinha, cheio de humildade, fez uma reverência, é claro, o que sempre deixava minha mãe encantada, e mostrou a vassoura. Daquele dia em diante, ele cuidou da limpeza do quintal e sua casinha brilhava mais do que nunca. Quando se sentiu melhor, ele afofou a terra, formando canteiros que regava sistematicamente. Então falava em japonês com minha mãe, mostrando a terra, o que ela logo entendeu que ele queria plantar. Minha mãe saiu e voltou com várias mudas de tudo o que podia ser plantado. Em pouco tempo tínhamos uma horta maravilhosa! Os legumes nasciam e cresciam a olhos vistos e as flores se derramavam por cima dos muros. Nosso quintal parecia um jardim japonês!
Tudo corria bem, Kenichi já era um grande amigo meu, e mesmo sem palavras, compartilhávamos nossas dores e nossas saudades. Eu ficava aflita para que a aula no grupo escolar terminasse logo, e eu voltava para casa, ansiosa para contar minhas histórias ao moço japonês. Evidentemente que ele não entendia as palavras, mas olhava para mim cheio de amor e compaixão. Embora tivesse sua própria religião ou crença, ele fazia questão de ir à missa conosco e vestia sua roupa de domingo que minha mãe havia arranjado para ele. Eu ia feliz ao seu lado, sabendo que meus colegas de escola invejavam minha sorte de ter um amigo japonês. Na igreja, como ele via minha mãe se persignando diante do altar, ele também se desmanchava em mil reverências para todas as imagens e todas as pessoas.
Continuávamos sem nada saber dele, de sua vida, de sua história. Meu pai tentava por todos os meios saber de onde ele viera, o que nunca resultava em nada. Kenichi emudecia e ficava triste. Se falava, nada entendíamos. Às vezes ele entoava canções desconhecidas para nós. E certa vez, quando meu irmão pequeno não dormia, atormentado pela dor de ouvido, Kenichi veio de sua casinha, pediu licença à minha mãe, colocou as mãos em concha sobre os ouvidos do pequeno, fechou os olhos e pareceu fazer algum tipo de oração. Meu irmão foi se acomodando até que dormiu e sarou completamente. Meus pais olhavam tudo aquilo de modo curioso, pois sem dúvida aquele moço era uma pessoa diferente. Entretanto, eles sabiam que os orientais valorizavam muito as questões espirituais, dessa forma, não deram muita importância ao fato. Meu pai quis pagar Kenichi pelos serviços de jardineiro, também sem sucesso. O moço recusou terminantemente. Deixou claro, por meio de gestos e palavras ininteligíveis que não aceitaria, que era nosso amigo e para registrar essa palavra, colocava sempre a mão no coração, e fazia reverências.
Quando minha mãe ficou doente e teve que ficar no hospital, Kenichi assumiu a casa. Ele fazia as refeições, lavava a roupa, tomava conta do pequenininho, que já ameaçava falar japonês. Aprendemos muitas coisas com ele, como esperar todos estarem à mesa, para agradecer e comer. E tenho certeza de que ele também aprendeu muitos de nossos costumes.
Kenichi ficou conosco por uns dois anos e tanto. Um dia, à mesa do jantar, já falando um sofrível português, disse a todos nós que precisava ir embora. Ficamos todos chocados e tristes. Eu tentei segurar as lágrimas, mas meus irmãos menores puseram a boca no mundo, como dizia minha mãe. Foi um drama. Ele se desculpou muito, tentando explicar que era necessário, que seria sempre agradecido à minha mãe e a todos nós por ter sido tratado como filho e irmão. Na semana seguinte, de malinha na mão e dinheiro que meu pai lhe havia dado, Kenichi se despediu de nós. Todos choramos juntos como se o mundo estivesse se acabando, e somente meu pai tentou segurar a emoção, como é próprio dos homens mais velhos. E assim Kenichi saiu de nossas vidas tão misteriosamente como havia chegado.
No dia seguinte ao de sua partida, um fato estranho aconteceu. Minha mãe levantou-se bem cedo e foi abrir a porta da cozinha para ver o que ocorria. Uma chilreada de pássaros nos acordou ainda de madrugada fazendo grande algazarra no quintal. Lá fora, os canteiros e a casinha de Kenichi estavam repletos de passarinhos de todas as cores. Um deles entrou pela nossa casa adentro e fez sua morada na beirada da janela da cozinha. De lá ele voava para um quarto, depois para outro, saía para o quintal, mas logo voltava. Este passarinho ficou conosco por muito tempo. Não falávamos muito sobre isso, talvez com medo de quebrar o encanto, pois o mistério requer certa dose de silêncio, contudo sabíamos que de alguma forma, Kenichi ficara com cada um de nós, talvez fosse seu espírito ou parte dele, ou alguma coisa assim parecida. Alguém que não tivesse conhecido o caráter e a sensibilidade de Kenichi diria que tudo não passava de coincidência.
De vez em quando eu, com saudades, eu saía para o quintal e me dirigia para a casinha de Kenichi, e o passarinho me seguia curioso. Lá eu examinava cada cantinho tentando encontrar alguma coisa que explicasse aquele mistério. Uma vez encontrei seus desenhos debaixo de um colchão e qual não foi minha surpresa quando vi numa página inteira o desenho colorido do pássaro que agora convivia conosco. Saí às carreiras chamando por minha mãe e todos nós olhávamos estupefatos para o desenho e para o passarinho, parecia uma foto, era idêntico. Sim, não havia mais dúvidas. Kenichi ficara conosco, de alguma maneira.