Logo ao nascer, o indivíduo é submetido ao mantra coletivo de seu país de origem. Uma afirmação inconsciente que permeia a visão do mundo e vida daquela população, mais ou menos positiva.
O idioma de uma nação é um conjunto de “mantras”, que facilita a comunicação consigo, com o outro e com o universo. Interiorizados ou expressos, estes conteúdos repetidos promovem maior ou menor conexão, saúde ou doença, alienação ou consciência.
Tudo parece ter iniciado, segundo o livro do Gênesis, com a construção da Torre de Babel. Na época, os descendentes de Noé, falavam a mesma língua e tinham a tarefa de “crescer” e se “multiplicar” quando decidiram construir uma torre que alcançasse o céu, a morada divina. Até que Jeová “confunde” as línguas, inviabilizando assim a construção. Metade da comunicação é falar, a outra metade escutar. Quando alguém fala, mas não escuta o que o outro fala, ocorre algo semelhante ao que o mito acima narra.
A fragmentação em um número extenso de idiomas e dialetos contribui em parte para a falta de compreensão e afastamento entre as pessoas. Mas por quê? Talvez pelo fato dos homens não perceberem que o essencial para o encontro com o divino é a comunhão entre si (torre interior) e não a construção da torre exterior.
Assim, por não perceberem que viviam na unidade e falavam a mesma língua, construíram a tal da torre. Por não perceberem sua unidade, qualidade maior do modo “Ser”, se perderam na busca pelo modo “Ter”. Na ambição e prazer peculiares ao “Ter”, perderam a paz e a alegria características do “Ser”.
Já naquela época abrimos mão da “Unidade” pela fragmentária ideia de “Partido”. Essa pode mesmo ser a história dos partidos políticos e também da fragmentação linguística, decorrência do afastamento do princípio do amor em direção ao princípio da individualização e do poder. O poder de nomear as coisas e de convencer que elas sejam da forma como eu acredito que elas devam ser.
A “confusão” decorrente do aparecimento de novos idiomas e a consequente perda de entendimento do “todo” foi expressa por Enio Starosky (2015), para quem a percepção da realidade depende do “sistema linguagem – pensamento”.
Para exemplificar, ele cita um “mantra” usado por muitas pessoas para desejar paz ao outro: “Salam”, em árabe, ou “Shalom”, em hebraico. A palavra original traz em si vários significados que se perdem na tradução para o português: integridade física, sanidade, saúde (física e espiritual) e aceitação – entre outros.
Um fenômeno semelhante acontece com o conceito de amor no idioma alemão. Enquanto os gregos, os romanos e mesmo as línguas modernas derivadas do latim possuem um número amplo de substantivos para designar o fenômeno do amor – afeto, simpatia, amizade, caridade, compaixão, ternura, paixão – a língua alemã usa um único vocábulo “Liebe”.
Às vezes a gramática do idioma favorece uma visão mais ou menos individualista. Observemos o aramaico, onde a conjugação dos verbos começa com a terceira pessoa e termina com a primeira: Ele ama, tu amas, eu amo.
“Nós, em nossa civilização ocidental, somos inclinados a começar tudo pelo ‘eu’. A gramática do eu em primeiro lugar é o reflexo do quão egoísta o meu mundo particular é”, destaca Starosky (2015).
Em algumas línguas, até mesmo as palavras que designam os dias da semana reforçam a conexão com algo maior. No livro Fundamentos de Astronomia, o autor Romildo Póvoa Faria (1987) atribui aos mesopotâmios a criação do conceito de semana em meados do 3° milênio A.C. Segundo ele, os planetas eram entendidos como verdadeiros deuses que exerciam influência direta nos seres humanos e nos acontecimentos da Terra.
Nesse sentido, dedicaram um dia à adoração de cada deus que conheciam, começando pelo Sol (domingo), que era o “mais importante”. Os outros dias foram destinados, respectivamente, à Lua (segunda-feira), Marte (terça-feira), Mercúrio (quarta-feira), Júpiter (quinta-feira), Vênus (sexta-feira) e Saturno (sábado). Muitas culturas preservaram essa concepção por meio da linguagem.
DIA DA SEMANA |
INGLÊS |
ESPANHOL |
SIGNIFICADO |
Domingo |
Sunday |
Dia do Sol |
|
Segunda feira |
Monday |
Lunes |
Dia da Lua |
Terça feira |
Martes |
Dia de Marte |
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Quarta feira |
Miercoles |
Dia de Mercúrio |
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Quinta feira |
Jueves |
Dia de Júpiter |
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Sexta feira |
Viernes |
Dia de Vênus |
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Sábado |
Saturday |
Dia de Saturno |
Fato é que a repetição de ideias e conceitos molda a forma de ver o mundo assim como o modo como nos relacionamos com ele, seja ele mais terreno, espiritual ou simbólico. Além disso, a língua de um país pode reforçar ou enfraquecer aspectos e comportamentos humanos.
Entre os mantras coletivos identificamos alguns com facilidade: “La vida es lucha”, dos argentinos; o “Viva la revolución”, entre os nicaraguenses, o “Dolce far niente” dos italianos, “Time is money”, dos americanos e a lei do Gerson ou “Gosto de levar vantagem em tudo” que, curiosamente, ainda prospera no Brasil.
Nascido na Argentina, o renascedor Ronald Fuchs conviveu por muitos anos com o mantra de que a vida é uma luta, uma crença que – segundo ele – se reflete não só nos indivíduos, mas também na política, nas empresas e nos relacionamentos.
Através de um trabalho consistente de autoconhecimento, ele identificou sua postura de atrito com as situações e pessoas que se apresentavam em sua vida e resolveu mudar. Aos poucos, a dinâmica de luta, enfim, está saindo de seu roteiro. “É um trabalho de uma existência inteira”, diz.
A mentira coletiva é uma programação que diz respeito aos aspectos que temos a trabalhar, e que pode ser transmutada a partir de nossas escolhas individuais e coletivas. Na avaliação de Fuchs, a crença brasileira de “levar vantagem em tudo”, por exemplo, está ligada à corrupção e à escravidão.
“Os dois temas estão intimamente relacionados ao abuso: estou numa posição de poder, então eu posso fazer tudo. Porque eu sou poderoso… Provavelmente há uma dinâmica de abuso a ser trabalhada aqui no Brasil e que no momento presente está aflorando com mais força”.
A prova de que é possível fazer diferente está em outras culturas. No distante Butão, o teor dos “mantras” que povoam as mentes dos moradores é de natureza diversa. Neste país, localizado nas montanhas do Himalaia, os pensamentos dominantes se referem à “Felicidade Interna Bruta”, “que não é uma lei escrita, mas um ideal que norteia as decisões do governo nos últimos 30 anos”.
A mesma disposição permeia as mentes na Dinamarca. Lá, “Confiança em si e no outro” é o mantra dominante, considerado o mais feliz do mundo, segundo a ONU.
Essa certeza é tão presente que cerca de 70% da população acha que desconhecidos são dignos de confiança (bem distante dos 7% reconhecidos no Brasil) e 94% acredita que o próprio indivíduo pode melhorar a sua vida. Com crenças bem menos positivas, o Brasil figura na 24ª colocação entre os 156 países no ranking da Felicidade (Previdelli, 2013).