Em seu conto, “A manhã de um senhor”, Tolstoi nos apresenta o príncipe Nekliudov, um jovem de ideais nobres que decidiu abandonar a universidade para se consagrar totalmente aos camponeses de sua aldeia. Julgando conhecer sobre a vida e os homens, disse à tia em uma carta que ele tinha o sagrado dever de se preocupar com os setecentos homens pelos quais ele “teria de responder perante Deus”. A tia, de forma delicada, respondeu ao sobrinho que fazer felizes os camponeses não era tarefa simples e que um bom proprietário devia ser severo e frio, coisa que ela estava certa que o rapaz nunca conseguiria. A senhora ainda lhe disse que a pobreza de uns tantos camponeses era mal inevitável e que podia ser apenas remediada, mas não resolvida com os planos pueris do príncipe, ainda que nobres e magníficos. Nekliudov não se intimidou com as palavras da tia e seguiu com seus objetivos. Passado pouco mais de um ano, o príncipe se convenceu de que seus planos não passaram de meras utopias, pois nada conseguiu entre os camponeses que, renitentes e desconfiados, não cooperaram com os empreendimentos do seu senhor. Amargurado e descrente, o príncipe concluiu que a tia estava certa ao dizer que é mais fácil encontrarmos a nossa própria felicidade do que fazermos a felicidade dos outros.
Pois bem, um abastado indiano chamado Bunker Roy, à semelhança de Nekliudov, sentiu-se impelido a fazer algo pelas aldeias pobres da India e abandonou a vida fácil e rica que poderia ter escolhido em qualquer lugar do mundo. Sua mãe rompeu com ele, não conseguindo compreender como um jovem bem educado nas melhores escolas e universidades, renunciava a tudo para ir trabalhar em uma aldeia. Insistiu ela com o filho, “mas você, que tem o mundo inteiro a seus pés, o que vai fazer lá?” Ao que ele respondeu, “quero ver uma aldeia, viver numa aldeia e cavar poços em uma aldeia”. E assim Bunker Roy construiu uma história de amor, deixando de lado uma educação elitista que quase o destruiu, palavras dele. Em 1965, sem emprego e sem dinheiro, ele viu a fome, a miséria e a morte de seus irmãos indianos. Conviveu com pessoas que ganhavam menos de um dólar por dia. Não se abateu, foi em frente.
Todo esse relato é exibido em um documentário apresentado pelo próprio Bunker Roy, numa simplicidade encantadora. Conta ele que, a despeito da miséria, o que encontrou entre aquela gente pobre foi um manancial dos mais extraordinários conhecimentos e habilidades que raramente são conhecidos, respeitados e trazidos ao conhecimento público justamente pela indiferença do mundo para com os mais pobres. Então, ele quis fundar uma universidade, mas só para os pobres, a UNIVERSIDADE dos PÉS DESCALÇOS. É uma universidade diferente que se caracteriza por um estranho requisito: o candidato tem que saber trabalhar com as mãos, ter uma dignidade de trabalho, uma habilidade que se pode oferecer à comunidade. Quem tem um grau em mestrado ou doutorado ou ainda que vá movido pelo dinheiro, já está desqualificado. Essa universidade deve ensinar e refletir o que os pobres acham importante para a comunidade. Isso foi feito, naturalmente que não de maneira tão fácil, mas com paciência e espírito forte.
Roy e sua equipe conseguiram redefinir o profissionalismo – o profissional é aquela pessoa que desenvolve uma combinação de competência, confiança e crença. Dessa forma, uma parteira ou um oleiro poderiam ser professores universitários, mostrando e ensinando suas habilidades. Nessa singular universidade, o aprendiz é o professor e o professor é o aprendiz. Sem arquitetos ou engenheiros convencionais, eles construíram a primeira universidade em 1986, onde cento e cinquenta pessoas viveram e trabalharam. Roy contou com doze arquitetos de pés descalços, que não sabiam ler nem escrever e também com um padre indiano que só fez oito anos de ensino primário e que mostrou ser a mais competente autoridade em energia solar, pois ele entende do assunto além de qualquer outra pessoa no mundo. A universidade criada é a única em que toda a eletricidade provém da energia solar. Enquanto o sol brilhar, toda energia virá dele, diz Roy numa confiança de fazer inveja.
As mulheres e crianças receberam um papel preponderante no empreendimento. Aquelas se revelaram competentes e brilhantes engenheiras solares. Muitas crianças não frequentavam a escola anteriormente porque tinham que cuidar das ovelhas e cabras e ainda fazer trabalhos domésticos. Com a Universidade dos Pés Descalços, elas foram incluídas e valorizadas, assistindo a aulas noturnas, onde aprenderam cidadania e democracia, além de como medir uma terra e cuidar de um animal doente. De cinco em cinco anos há eleição entre as crianças para os cargos de Primeiro Ministro, Ministro da Saúde, Ministro da Educação, Ministro da Energia, tudo num processo democrático. Os ministros supervisionam e acompanham 150 escolas com 7.000 alunos. A Primeira Ministra atualmente é uma menina de 12 anos que, de manhã toma conta de 20 cabras e à noite exerce seu cargo junto à Universidade.
As mulheres se descobriram como verdadeiras engenheiras solares, cobrindo grande parte da India, depois treinando muitas outras mulheres no Afeganistão, África, Serra Leoa e Gâmbia. A beleza disso é que mostraram que sabiam se comunicar perfeitamente, cada qual em sua língua, mas com incrível habilidade gestual. Com a experiência, Roy constatou que era muito difícil treinar os homens porque devido à sua personalidade inquieta, ambiciosa e volúvel, todos eles queriam certificados para procurar empregos nas grandes cidades. Já as mulheres, entre elas, inúmeras avós, mostraram-se comunicativas e interessadas em fazer progredir sua própria aldeia.
A Universidade dos Pés Descalços tem sido um sucesso! Roy e seu pessoal de pés descalços receberam 50.000 dólares do prêmio de Arquitetura Aga Khan e devolveram o dinheiro recebido como prêmio porque se sentiram insultados quando os patrocinadores não acreditaram que não havia arquiteto convencional nos bastidores do projeto. Ali na universidade vivencia-se o estilo de vida de Mahatma Ghandi em que se come no chão, dorme-se no chão e trabalha-se no chão. A realização da Universidade dos Pés Descalços provou que a educação pode ser diferente, respeitando-se a cultura local e valorizando as pessoas em seu próprio lugar. É uma verdadeira mudança de paradigmas e uma revolução na educação que me fez lembrar muito de Paulo Freire.
Voltando ao conto de Tolstoi, o príncipe Nekliudov se decepcionou com a ingratidão dos camponeses e se sentiu infeliz tão logo as dificuldades apareceram, afinal não é fácil lidar com gente. Tolstoi quis justamente focar as misérias humanas, mostrar a complexidade das pessoas e a quase impossibilidade de ajudar de fato os mais desfavorecidos. Com a Universidade dos Pés Descalços, a vida não imitou a arte. A receita? Roy Bunker sabe: um pouco ou muito de paciência, um espírito simples, porém determinado e forte, cooperação, solidariedade, partilha de conhecimentos. Sim, é possível.
Para quem desejar assistir à exposição do vídeo de Roy Bunker, é só acessar: http://www.ted.com/talks/lang/pt/bunker_roy.html#.Tty9NE-cDhE.facebook