“Pensando bem, é difícil acreditar que estejamos vivos até hoje! Quando éramos pequenos, viajávamos de carro sem cintos de segurança e sem air-bag! Os vidros de remédio ou as garrafas de refrigerantes não tinham nenhum tipo de tampinha especial, nem data de validade. A gente bebia água da chuva, da torneira e nem conhecia água engarrafada. Que horror!
Nas férias, saíamos de casa de manhã e brincávamos o dia todo; nossos pais não sabiam exatamente onde estávamos, mas sabiam que não estávamos em perigo. A gente comia muito doce, pão com muita manteiga, mas ninguém era obeso. No máximo, um gordinho saudável. Nem se falava em colesterol.
Não existia o Playstation, nem TV à cabo, nem videocassete, nem computador. Tínhamos, simplesmente, amigos! A gente andava de bicicleta ou a pé. Íamos à casa dos amigos, tocávamos a campainha, entrávamos e conversávamos. Sozinhos, num mundo frio e cruel. Sem nenhum controle! Como sobrevivemos?
Inventávamos jogos com pedras, feijões ou cartas. Brincávamos com pequenos monstros: lesmas, caramujos e outros animaizinhos, mesmo se nossos pais nos dissessem para não fazer isso. Os nossos estômagos nunca se encheram de bichos estranhos! No máximo, tomamos algum tipo de xarope contra vermes.
Os maiores problemas na escola eram: chegar atrasado, mastigar chicletes na classe, mandar bilhetinhos falando mal da professora ou matar aula só pra ficar jogando bola no campinho. Se nos comportávamos mal, nossos pais nos colocavam de castigo e, incrivelmente, nenhum deles foi preso por isso! Sabíamos que quando os pais diziam ‘não’, era ‘não’.
Tínhamos liberdade, sucessos, algumas vezes problemas e desilusões, mas tínhamos muita responsabilidade. E não é que aprendemos a resolver tudo? E sozinhos! Se você é um desses sobreviventes, parabéns, pois acho que curtiu os anos mais felizes de sua vida.”
Pois é, e para reforçar a teoria de que a sobrevivência está mais difícil e trágica pra muita gente, também vou reproduzir o texto ‘Tsunami’, da Irmã Zuleides Andrade, de Curitiba:
“A onda gigante que os asiáticos denominam ‘Tsunami’ não considerou quem merecia férias na orla marítima nem quem se alegrava pela oportunidade de um ganho extra. Não considerou a idade e procedência, os laços de família e amizade, os compromissos e carências. Nem ao menos levou em conta a proximidade com as festas natalinas e o renovar de esperanças do ano 2005.
Avassaladora, lavou praias, jardins, ruas, abrigos, habitações… Lavou e levou belezas naturais, propriedades, sonhos, projetos, presunções, egoísmos, virtudes e vícios dos humanos. Levou a segurança de lares e de amores cultivados, levou a mão amiga e o sorriso de tantas crianças.
A onda gigante lavou, levou e enterrou vidas. Obrigou os homens a abrirem grandes valas para enterrarem corpos. Empurrou muitos países a abrirem caminhos de solidariedade para irem ao encontro dos sobreviventes. Abriu também caminhos para os oportunistas. Há rumores de que chegam a sequestrar crianças para receberem os fundos do governo destinados aos órfãos.
Nossa ajuda chegará ao destino certo? Cabe a nós devolver a Deus, através dos flagelados, um pouco do muito que recebemos em bens materiais e espirituais. Há o sofrimento de milhões de pessoas que choram seus mortos e que perderam tudo. Há centenas de anjos voluntários que buscam amenizar a dor e devolver dignidade.
Vacilam fagulhas de fé. A esperança procura luzes para continuar em meio aos escombros da vida. Desponta e floresce a fina flor da caridade. A humana dor grita pelo amor. Percebemos, em meio a tanta tragédia, algumas centelhas de luz? A vida é presente, o que estamos fazendo dela? O planeta é nossa casa, como cuidamos dele?
Que nossas preces, independente de crença e nacionalidade, nos irmane em torno do Deus da Vida, pelos que partiram e pelos que permanecem. Que nas fendas abertas pela tragédia, no solo de tantas vidas e nações, consigamos plantar sementes de misericórdia, ajuda e esperança. Que esta dor aproxime corações e mentes, mãos e sentimentos, e mova o mundo a ações de solidariedade e de paz.
Que a água, fonte de pureza e de vida, retorne de mansinho, lave nossas mágoas, nossos medos, nossa dor, nossas dúvidas e deixe espaço para o beijo do sol que vem reacender nossa fé e brindar-nos com o arco-íris de esperança. Que nosso pensar, orar e agir, atenue, silencie e harmonize, pelo menos em parte, as notas trágicas na sinfonia da vida!”
E então, o que dizer mais? O que passou, passou? Será que não é possível resgatar as nossas boas experiências da infância para devolver um pouco de alegria àqueles que perdem tudo? Dom Hélder Câmara disse que “a realidade duríssima vivida pelos nossos povos nos vem ajudando a abrir os olhos e a tomar posição decidida em favor dos pobres”. Pense nisso e não fique só curtindo o passado, mas faça a sua parte hoje!