Saio de casa bem antes da hora da sessão de fisioterapia, justamente para prevenir transtornos como tráfego embrulhado, elevador enguiçado e outras coisas. Sou perfeccionista, reconheço. Daquelas que procuram cercar qualquer dificuldade, impedir a todo custo que me atinja. Ah, como se isso fosse possível, mas mesmo sabendo que a vida é feita de felicidades e dificuldades, continuo lutando contra os problemas. Na saída, encontro com uma conhecida. Evidentemente que a cumprimento, sorrio, maneiras de gente civilizada. Só que ela me segura, quer falar de sua vida, de seus problemas e aí a coisa vai longe. Fala da noite em claro por causa do barulho dos estudantes, fala da rinite renitente e outras. Vou ouvindo e olhando no relógio. Faz uma pausa e pergunta como eu vou. Vou bem, obrigada, tenho pressa.
Finalmente me desvencilho da conhecida.
O trânsito vai bem, tudo calmo demais para o caos rotineiro de nossos tempos atuais. Resolvo cortar caminho, pegando uma via secundária, mais tranquila. Tenho que virar à direita, mas não consigo, pois a rua é estreita e há carros estacionados em ambos os lados. A fila de carros que vêm em sentido contrário é imensa. Finalmente encontro uma folga e entro. Que bom, aí mergulho o carro inteiro dentro da rua e neste momento ouço o motorista do último carro dizer: lá não passa, a senhora vai ter que voltar. Só que agora não consigo porque tenho que dar ré e o trânsito da rua em que eu estava anteriormente agora é um formigueiro de carros, um pandemônio de buzinas. É praticamente impossível voltar. Tenho que seguir em frente, mas em frente para onde se está tudo impedido? Nesse momento mais carros vêm em sentido contrário. O trânsito complica. A via preferencial está entupida pelo fato de receber muitos carros que desviaram sua rota por causa do impedimento. Não vou para frente, nem posso ir para trás. Um carro buzina, outro segue o exemplo e agora as buzinas iniciam um concerto interminável. Arrependo-me amargamente por ter escolhido este caminho. Já fico pensando que não era para sair de casa. Quando os ovos se quebraram eu devia ter entendido. Tarde demais.
Subo os vidros, ligo o ar e uma música clássica. Respiro fundo, fecho os olhos e tento imaginar um lugar aprazível como uma praia deserta, onde o único ruído é o das ondas quebrando na areia. Não funciona. Estou alerta, preciso saber direito no que vai dar isso. Abro a janela e agora a confusão é infernal. Um motorista mais adiante faz um sinal para mim. Não entendo o que ele quer, não dá para andar, nem para a frente, nem para trás, já disse isso. Lembro-me do horário da sessão da fisioterapia, já era, esquece. E daí? Ninguém vai morrer por causa disso. É só uma coluna um pouco travada, mas está tudo bem. Pior são os acidentes, lembra o navio encalhado lá na Itália? Na hora do perigo, qualquer um dá valor à vida e deixa tudo para trás. A vida é o que mais importa. Vão-se os anéis, ficam os dedos. Uma hora a coisa resolve. É ter paciência.
Nesse momento, vejo um ser, mais parece um animal sujo e perdido, mas é um homem. É um andarilho, um sem teto, sem terra, sem pão, sem nada. Têm as mãos imundas e com elas, cava sacos de lixo que estão amontoados na calçada. Ao mesmo tempo em que fuça o lixo ele come um pedaço de alguma coisa que achou lá mesmo. Não liga para o mundo, não se importa com o trânsito, com os carros, com o barulho das buzinas. Não. Ele está imundo em seu mundo, só e desprezado, e o mundo também não se importa com ele. Consigo mover o carro um pouco, o que me deixou em posição de olhar o homem mais de perto. Meu Deus! É um homem, por incrível que pareça. Tem as barbas negras, grandes e emaranhadas. Usa uma espécie de roupa ou o que restou dela e ela está tão suja como o próprio homem. Ele parece ter saído das cavernas. Seus olhos negros agora me fitam. Esqueço o trânsito, a fisioterapia, tudo. Ele me olha de um jeito como se me reconhecesse ou simplesmente me conhecesse. Eu também o fito. Não sei o que fazer, nem o que pensar. Nossos olhares se cruzam. Será que o conheço? Sim, eu o conheço, deveria conhecê-lo, afinal é meu semelhante, é meu irmão.
De repente pareço acordar de um sono pesado. Sou interpelada por milhares de buzinas que exigem que eu volte a atenção para o trânsito, para a loucura da civilização. Percebo que já posso seguir em frente, alguém conseguiu que desimpedissem a rua. Vou seguindo, trôpega, tento olhar para o homem que já ficou alguns metros atrás, mas não o encontro. Tudo o que consigo ver é um monte de sacos de lixo e alguma coisa que se move entre eles. Penso, eu preciso ir ter com ele, saber quem é, saber seu nome, o que sente e o que pensa, mas sigo em frente. Logo estou mais distante, não vejo mais o homem ou também o que restou dele. Sei que é impossível tirar seus olhos de minha mente ou de meu coração. Desisto da fisioterapia, volto para casa. Passo no supermercado e compro ovos. Dessa vez, retiro três ovos com cuidado, com calma para que não se quebrem. Urge fazer o bolo e refazer o mundo.