Nem me lembro onde e quando comprei a primavera que vive apertada num vaso grande em minha sacada. Às vezes penso que ela deveria estar num vasto chão de terra, vivendo assim às largas, como era da vontade do Criador, que não criou os vasos para espremer plantas e flores. Mas os entendidos me informaram de que se tratava de uma miniprimavera perfeitamente capaz de viver num vaso que contivesse terra suficiente para seu desenvolvimento. E a minha primavera é diferente, as flores se misturam na cor, um pouco cor de vinho, um pouco cor de carne vermelha, tons diferentes que se casam perfeitamente.
Às vezes, quando vou rezar, subo e alterno meu olhar entre as montanhas e a primavera. Aí me perco nos detalhes da flor que contém mil minúcias e particularidades botânicas que não sei nomear, mas garanto que é um milagre, insisto que é um milagre de Deus e torno a repetir que ninguém conseguiria fazer coisa tão fantástica. Tão perdida, me distraio e me esqueço de completar as orações, mas me perdoo porque sei que admirar as obras de Deus também é um modo de falar com Ele. As crianças também se distraem, mas não se torturam por isso, e nós temos que nos fazer crianças para entrar no reino dos Céus.
Bem, ultimamente a primavera estava feia. É claro que tem que se considerar que era inverno, mas cada vez que subia lá, ficava triste. As folhas estavam de um verde opaco, doente, quase morto. Os galhos terminavam em gravetos secos. As poucas e pequenas flores eram igualmente sem vida. Eu ficava aborrecida e aí vinha a culpa, imagine só, ficar assim porque a primavera está meio feia. O mundo do jeito que está, fim dos tempos como diria minha mãe, milhares de refugiados morrendo tal qual os escravos em épocas remotas, eles morrem nos porões, sem ar, sem comida, sem vida. E quando conseguem sobreviver à travessia, são enxotados daqui para ali, debaixo de chuva ou de sol forte. E eu aqui, preocupada com minha primavera que se recusa a ser bonita como era.
Então meu marido, que é um especialista em me fazer feliz, apareceu com um adubo esquisito dentro de um saquinho de plástico. É que gosto das embalagens, dos rótulos, das validades e certezas escritas, e, no entanto, sei que a vida é incerta e o mundo mais impreciso do que nunca. E ele me garantiu que o vendedor era um perito no assunto, e que o remédio era próprio para árvores pequenas. O adubo fez pouca diferença para uma arvorezinha lá do canto, e meu marido achou de ir distribuindo aquela areia, meio terra, meio grão por vários vasos. Até na samambaia de metro ele colocou.
Um dia depois ela estava completamente seca. A primavera também recebeu seu quinhão, o que me deixou apreensiva e me fez ficar de olho vigiando, tal qual mãe atenta que vigia a respiração do filho doente. Até já me preparava para as exéquias, puxa vida! Tantos anos aqui comigo. Tantos anos de amizade, de admiração. Mas eis que o milagre acontece. De repente as folhas se apresentam com um verde tão brilhante como se tivessem sido enceradas pela mais diligente especialista de limpeza do palácio de Buckingham. As flores se acotovelam para se mostrar e o colorido é inigualável. Borboletas raras e belas como nunca tinha visto antes, farfalham suas elegantes asas de seda pura em torno das flores cor de vinho e cor de carne vermelha. A vida tem disso, é e não é, o adubo aparentemente venenoso fez bem para a flor, ou foi o inverno que deu trégua, ou a bendita chuva que caiu ou simplesmente Deus, o criador da primavera, que me viu distraída da oração e embasbacada com a beleza de sua criação. Vai ver que foi. Viva a primavera!