No texto anterior, falamos sobre a beleza como critério exclusivo para a apreciação de uma obra de arte. Continuando a discorrer sobre as questões subjetivas que interferem na fruição do objeto artístico, vamos apresentar hoje a noção de ‘expressividade’.
As imagens, formas e cores que compõem uma obra, seja ela figurativa ou abstrata, de pintura ou escultura (e mesmo de arquitetura), costumam nos transmitir sentimentos e sensações. E, como acontece com a beleza, os sentimentos e sensações que elas conseguem comunicar ao observador também têm uma grande capacidade de atração (e, portanto, igualmente de rejeição), passível de nos enganar no seu julgamento. Nesse caso, da expressividade, a obra que transmitir esses sentimentos e sensações de modo mais legível, ou inteligível, a que tiver a expressão mais óbvia, mais fácil de ser apreendida, é aquela que tende a seduzir mais rapidamente o espectador.
É preciso, primeiramente,aceitara existência de diferenças de linguagem que são condicionadas pela época e pelo local de produção de cada peça, além, é claro, daquela diferença (natural e bastante desejável) que é dada inevitavelmente pela individualidade dos talentos. Depois, uma vez aceitas as diferenças, é proveitosoque se procure conhecerum pouco do contexto cultural em que cada obra foi criada, justamente para lançar alguma luz sobre as razões da diversidade da carga expressiva que obras diferentes emanam.
Para clarificar essa questão, o exemplo que daremos é o das representações do sofrimento em cenas de lamento sobre o Cristo morto: asPietà, ou piedades. APietàrepresenta o instante em que o corpo do Cristo morto, uma vez descido da cruz, é cuidado e chorado por sua mãe e pelas pessoas que acompanharam sua agonia: normalmente, além de Maria, Maria Madalena e João Evangelista. A cena não é descrita pelos Evangelhos, mas foi muito representada, a partir do século XII, pela arte bizantina, alcançando um grande sucesso no final da Idade Média. Os exemplos mais ‘expressivos’ vêm do norte europeu, em especial das regiões de língua germânica: pequenos grupos – apenas Maria e o Cristo – caracterizados pela exacerbação da dor materna e pela intensificação das marcas do sofrimento provado pelo Filho. Imagens como a da fig.1 eram chamadas entãoVesperbilden, ou seja, literalmente, ‘imagens do anoitecer’, do crepúsculo, numa referência poética ao fim da vida. Observem os sinais de dor evidenciados: o cenho franzido da Virgem, o olhar baixo, lábios caídos; o rosto do Cristo, morto de olhos abertos e arregalados, e a ferida aberta no flanco, de onde escorre um fio de sangue pintado, muito esmaecido mas ainda visível.
O autor anônimo dessa pequena escultura quis sublinhar os aspectos de dor, e isso é precisamente o que faz com que essa obra tenha um caráter expressivo muito evidente e de leitura fácil: entendemos facilmente o que se passa.
Nossa segunda imagem [fig. 2-6] vem do norte da Itália, da cidade de Bolonha: mostra outrapietà,desta vez concebida em grupo de mais figuras, de tamanho natural e montáveis como um presépio. São figuras realizadas em terracota – barro cozido – e que recebiam pintura no final do processo (que tende a desaparecer com o tempo, como neste caso). Na região italiana da Emilia Romagna (onde foi produzido este grupo), desprovida de jazidas de mármore, não floresceram muitos escultores propriamente, mas artistas que trabalharam a escultura pela modelagem da argila.
O autor desse grupo sedutor é chamado Niccolò dell’Arca. É um artista de origem incerta, provavelmente vindo de Bari, no sul do país. Sabe-se que trabalhou em Nápoles, em Veneza e em Bolonha, na Emilia Romagna. É chamado “dell’Arca” por causa de sua participação na decoração escultórea da grande Arca de São Domingos, o túmulo do santo que está em Bolonha, na igreja de San Domenico.
A datação dessa obra é controversa, girando entre os anos de 1462 e 1485. Trata-se, provavelmente, por sua excepcional qualidade, de uma obra da maturidade de Niccolò dell’Arca, que mostra aqui a influência da arte nórdica, justamente pela expressividade excessiva e aberta. É um grupo que nos impressiona e comove pela expressão da dor levada ao ponto mais alto: nesse nível de paroxismo é uma obra sem igual no período e, poderíamos dizer, muito mais próxima da cultura norte-européia que da italiana. Cada movimento é bloqueado e captado pelo artista no momento da mais insustentável tensão. Olhos arregalados, joelhos dobrados, bocas escancaradas… Parece que se pode escutar os gritos e lamentos dessas mulheres. No dizer do historiador da arte Adolfo Venturi, esta é uma cena de pietà transformada em cena de terror. Todas as formas são violentas, excessivas, delirantes. Há martírio de corpos e de almas em expressões cruas de dor que beiram à fúria.
Bolonha foi um local que atraiu muitos dos melhores escultores italianos no século XV. Um deles foi o jovem Michelangelo, que trabalhou na mesma igreja de San Domenico e, portanto, pôde conhecer a obra de seu antecessor, Niccolò dell’Arca. O impacto de Niccolò sobre Michelangelo não é de se desprezar: é uma noção do Renascimento que não passa pela reinterpretação do antigo, mas pelas experiências nórdicas, mais ‘expressionistas’.
Quase na virada para o século XVI (uns quinze anos depois da obra de Niccolò), Michelangelo retoma, em Roma, no mármore branco e com figuras também de tamanho natural, o tema dapietà.O resultado [fig. 7-9] é uma das esculturas mais belas de toda a História da arte. Ele volta ao grupo reduzido, de mãe e filho, nos moldes nórdicos. Primeiramente nos chama à atenção a beleza do panejameno, dos tecidos que compõem as vestes da Virgem, que talvez testemunhem o momento da exibição de maior virtuosismo técnico em toda a carreira do Michelangelo escultor: pregas que estrategicamente se multiplicam, para alargar lateralmente a base de sustentação que envolve o corpo masculino: só assim essa mãe de compleição delicada conseguiria sustentar um corpo que é maior que o seu. Mas esse panejamento não é feito de uma profusão incontida e confusa de pregas de ritmos – o que levaria a um resultado abstrato; pregas e dobras são controladas pelo corpo, cuja forma é perfeitamente clara e perceptível sob os tecidos pesados. Michelangelo domina a representação da natureza tal e qual ela se apresenta diante de nossos olhos.
Mas ele deseja falar além do testemunho óbvio do que é natural, do que fala por si. Ele observa doutrinas neoplatônicas, em voga na Florença do último quartel do século XV. Além disso, ele é um exemplo acabado da nova posição do artista na sociedade, alcançada com o Renascimento: o artista agora é um ser que pensa, é um intelectual que tem a contribuir. A arte começava a deixar de ser trabalho manual, arte mecânica, para contribuir com a ciência, com a filosofia… Para um platônico, o mundo físico, natural, este que enxergamos, tocamos, enfim sentimos, já é decaído, porque é reflexo imperfeito de um mundo superior, o mundo das idéias. Deste modo, a arte que copia servilmente um mundo já decaído e imperfeito só pode ser cópia da cópia. Disso decorre que a forma externa não precisa ser necessariamente verdadeira, coincidente com o que encontramos na natureza.
Comparemos então o grupo de Niccolò em Bolonha com a peça em mármore de Michelangelo na basílica de São Pedro, no Vaticano. (E é preciso lembrar que Michelangelo certamente conhecia a obra de Niccolò). A primeira é o desespero, digamos, descabelado de uma verdade crua. Mas eis que Michelangelo nos apresenta figuras completamente desprovidas de quaisquer sinais daquela dor lancinante que transborda no lamento pela morte de um filho. Pelo contrário, aqui tudo é serenidade e silêncio. A Mãe parece mais jovem que o Filho; e o Filho parece apenas dormir. Michelangelo abole o sofrimento dos corpos e das almas. As carnes são lisas, sem qualquer indício da violência vivida pelo homem; sem mesmo qualquer indício de vida. Formas idealizadas, limpas, puras: eis o predomínio da idéia sobre a natureza. O interior se projeta no exterior, de forma que, na triste cena do lamento, o artista nos apresenta a figura bela, serena e jovem da Mãe imaculada, e a figura bela, serena e jovem do Filho de Deus. A expressão dessa pietà ignora o tempo e a dor. Se a de Niccolò é mais óbvia, a segunda exige esforço de pesquisa e raciocínio. Porém – a história até aqui confirma – são ambas obras de arte de altíssima qualidade técnica e expressiva. Apenas diversas.