Por fim, nosso ponto de discussão hoje – e que finaliza as questões iniciais sobre a apreciação de uma obra de arte – é o da verossimilhança. No jargão da História da Arte, o que chamamos de verossimilhança pode ser melhor entendido pela palavra ‘naturalismo’. Naturalismo é vocábulo que se refere à natureza. No caso de uma obra de arte, a imagem ‘naturalista’ é aquela que melhor imita os aspectos sensíveis que a natureza apresenta: cores, formas, texturas, etc.; aquela que parece mais ‘real’, mais ‘viva’, mais ‘verdadeira’.
Este ponto é muito importante, porque ele está na raiz de toda a arte ocidental, que é a nossa arte. Foram os gregos clássicos que primeiramente desenvolveram (no século V a.C.) a arte ao ponto de um grande naturalismo. E foram eles que, além disso, discutiram as questões filosóficas envolvendo a idéia de ‘mimesis’, da imitação do natural. Dos gregos, não restou pintura mural que testemunhasse isso, mas nos chegaram suas esculturas e pinturas decorativas de vasos de cerâmica [fig.1: Taça ática. c. 490-480aC. diâmetro: 26,8cm. Paris, Museu do Louvre] que permitem supor o alto nível do que se perdeu. Os romanos conservaram os conhecimentos dos gregos a respeito da interpretação naturalista, como o que se observa nos afrescos remanescentes de Pompéia e Herculano [fig.2: Pêssegos e jarro de vidro. Afresco de Herculano; c. 50d.C. Nápoles, Museo Archeologico Nazionale].
A cristã Idade Média, interessada em aspectos intangíveis da existência e com uma sociedade em que a transmissão dos conhecimentos era limitada por várias razões, viu o naturalismo desaparecer, dando lugar a interpretações mais abstratas de figuras humanas e da natureza [fig.3:Monges de San Millan de la Congola. Comentário ao Apocalipse – Adão e Eva. c. 776-786. Madri, El Escorial] que podem parecer toscas. Foi o Renascimento, desde o século XV, ávido de ciência, que se interessou pelas pesquisas que recuperaram o naturalismo: desenvolveram a perspectiva geométrica (sistema matemático de representação do espaço, que dá a ilusão de profundidade) e observaram muito as formas naturais, criando meios de lidar com as tintas em efeitos mais miméticos.
Esse é o caso de Leonardo da Vinci, que, com a técnica do ‘sfumato’, diluiu os contornos das figuras que antes as separavam asperamente da atmosfera [fig.4: Leonardo da Vinci. Monalisa (det.). 1503-1504. óleo s/ tela; 102,4 x 76,8cm. Paris, Museu do Louvre] e nublou gradualmente os fundos de paisagens, azulando e arroxeando as montanhas mais e mais distantes [fig.5: Leonardo da Vinci. Anunciação (det.) 1472-1475. Têmpera s/ madeira; 98 x 217cm. Florença, Galleria degli Uffizi].
E bem mais tarde, no período Barroco, a arte chegou a um grau técnico tão elevado, que os artistas foram mesmo capazes de enganar os olhos do observador, criando espaços imaginários, como essa cúpula pintada pelo italiano Andrea Pozzo numa igreja de teto plano e que se parece perfeitamente com uma cúpula real [fig.6: Andrea Pozzo. Falsa cúpula da igreja de Sant”Ignazio, Roma. Afresco. c.1685]. Essa pintura ilusionista foi chamada ‘trompe l’oeil’ (traduzindo literalmente: ‘engana-olho’).
A imitação da natureza em arte só deixou de ser uma espécie de necessidade com a chegada da idade contemporânea. As manifestações de uma liberdade maior dos artistas e da independência de sua expressão diante da natureza começou a tomar corpo entre os séculos XVIII e XIX. O Romantismo é o movimento que deseja que a arte manifeste algo mais do que os olhos vêem, e isso pode incluir sensações, sentimentos e todo tipo de aporto subjetivo.
A natureza pode agora ser alterada em função da expressividade do artista. Assim, um galho de árvore tortuoso contra um céu de cor irreal pode transmitir mais intensamente a angústia, o medo ou o mistério [fig.7: Caspar David Friedrich. Abadia em Oakwood. 1809-1810. Óleo s/ tela; 110 x 171cm. Berlim, Schloss Charlottenburg].
A partir da metade do século XIX, as experiências estéticas e a importante contribuição tecnológica da fotografia levaram os artistas a buscarem outras formas de expressão, distanciando-os ainda mais da vontade de copiar a natureza. É um período de experimentos e de grande observação dos fenômenos naturais. Além disso, os artistas deixam seus ateliês e vão pintar ao ar livre (é só nesse tempo que as tintas passam a ser colocadas em bisnagas e são, por isso, fáceis de carregar).
Os impressionistas vão pesquisar a luz e o movimento, querendo captá-los em seu dinamismo [fig.8: Claude Monet. Pôr-do-sol em Etretat. 1883-1885]. O Expressionismo vai deformar formas e cores para amplificar a expressão de sentimentos, sensações, etc., um pouco como Friedrich e outros românticos já haviam feito [fig. 9: Edward Munch. O grito. 1893. óleo, têmpera e pastel sob cartão. Oslo, National Gallery]. Depois da virada do século XX, mais e mais experiências estéticas e formais se sucedem velozmente, e a arte logo chega à abstração pura.
Isso posto, o que eu tenho a dizer é que outro engano muitíssimo comum está no fato de as pessoas desejarem ver nas obras de arte uma representação fiel da realidade, rejeitando obras que não tenham um conteúdo figurativo ou que não correspondam a uma ‘correta’ interpretação da natureza. Para essas pessoas, a melhor obra é sempre aquela em que o artista ‘sabe’ copiar o que seus olhos vêem. Para o senso comum, é quase uma obrigação do artista copiar a realidade com destreza, e as distorções da natureza que se observam com maior freqüência na arte contemporânea chegam a irritá-las, sendo consideradas arremedo do real, desenhos grosseiramente incorretos, pastiches estúpidos.
O caso da apreciação da verossimilhança em arte é tão sério, que está na causa de muitas crianças que desenhavam com prazer pararem de desenhar por volta dos 10 ou 12 anos de idade, quando entram numa fase de querer copiar de modo naturalista as coisas à sua volta. Elas desistem por acharem que seus desenhos não se parecem tanto com a realidade quanto gostariam que parecessem ou como acham que deviam parecer. Param, dizendo “eu não sei desenhar”.
Aqui é importante lembrar que a maioria esmagadora dos artistas tem a habilidade, além do treino e do estudo necessários para representar o mundo de um modo naturalista. Portanto, nós temos de nos convencer de que, se ele não faz assim, é porque ele tem suas razões para isso. A propósito desse debate, um exemplo perfeito, dado pelo historiador E. Gombrich1, é o da comparação de uma lebre desenhada pelo alemão Dürer [fig.10: Albrecht Dürer. Lebre. 1502. Aquarela e guache s/ papel; 25,1 x 22,6cm. Viena, Graphische Sammlung Albertina] com um galo desenhado por Pablo Picasso [fig.11: Pablo Picasso. Galo novo. 1938, anteriormente em posse do artista]. O artista espanhol consegue dar forma não a um galo específico que teve diante dos olhos num determinado instante, mas justamente àquilo que é intangível: a estupidez do galo, sua agressividade. Ou seja, ele faz o mais difícil, e o resultado é admirável.
Portanto, sobre apreciação de obras de arte e o aspecto de verossimilhança, vale o que já dissemos no primeiro artigo: que é preciso um esforço contínuo de aprendizado, de busca de informações que auxiliem a leitura da obra e, sobretudo, que se evitem as idéias pré-concebidas. Uma anedota bem conhecida na História da Arte nos serve agora para finalizar este texto. Numa exposição de sua obra no início do século XX, o pintor francês Henri Matisse foi abordado por uma senhora que, inconformada com as cores pouco naturais dos retratos, perguntou-lhe algo como “Mas o senhor já viu uma mulher verde?” [fig.12. Henri Matisse. Madame Matisse (La Raie verte). 1905. Óleo sobre tela; 40,5 x 32,5cm. Copenhague, Statens Museum for Kunst]. E Matisse teria então respondido, apontando para a obra: “Minha senhora, isto não é uma mulher, é um quadro”.